"Cresci no lixão, sou modelo na China e ajudo meninas da periferia"
Sandra Passos, 29, teve uma infância pobre, cuja fonte de renda e de alimentação vinha de um lixão no Rio de Janeiro. Nesse depoimento, ela fala com orgulho da sua origem, conta os sacrifícios da família para ela se tornar modelo, a carreira na China e o projeto que ajuda meninas da periferia a seguir os mesmos passos que ela.
“Eu, meus pais e meus 15 irmãos morávamos em uma casa próxima ao lixão da Praia da Luz, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Meu pai era criador de porcos e minha mãe garçonete. Nossa fonte de alimentação e renda era o lixão: pegávamos móveis, roupas e brinquedos de lá. Meu pai separava a lavagem dos animais e a nossa comida, galinha, carne, legumes, verduras, frutas, iogurte, arroz. Se o alimento estivesse estragado, descartávamos a parte podre e comíamos a parte boa. Eu não tinha nojo. Comíamos bem e nunca passamos fome.
Eu era a caçula dos meus irmãos e chamava atenção pela altura, por ser magra e pelos olhos verdes. Um amigo da minha mãe comentou da minha beleza e, a partir daí, ela viu um potencial em mim para ser modelo e apostou todas as fichas. Eu nunca sonhei em sair na capa da revista, só queria fazer algo para melhorar a nossa condição. Aos nove anos, desfilei pela primeira vez em um concurso de beleza em uma loja de moda infantil no shopping.
Aos 11, minha mãe pagou um curso de modelo que custava R$ 180. Ela investia praticamente todo o salário dela, de R$ 360, na mensalidade e nos custos para sustentar o padrão de beleza que era necessário para me inserir no mercado. Comprava roupas, sapatos, maquiagem, pagava unha, cabelo, depilação. Quem me via, não desconfiava da minha pobreza.
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Minha alimentação era diferente da dos meus irmãos: tomava água de coco e comia peito de frango
Minha mãe se sacrificava muito, às vezes deixava de comer e dava aos meus irmãos uma alimentação diferente da minha. Enquanto eles comiam fubá, bolinho de chuva, ovo, feijão com farinha, salsicha, eu comia peito de frango, tomava leite desnatado e água de coco todos os dias para ficar com a pele bonita. No início, eles não compreendiam por que eu tinha esse cuidado especial e ficavam enciumados, mas depois entenderam e passaram a me apoiar.
Durante o curso, eu fotografei para um jornal local, sem ganhar nada. Minhas fotos foram parar na internet. Uma olheira da agência Mega Model viu, entrou em contato, eu fiz os testes, um book e fui agenciada. Um dos diretores disse que eu precisava operar o meu nariz porque ele não era harmonioso com o meu corpo e que o mercado iria me rejeitar. Foi impactante ouvir aquilo aos 12 anos de idade. Fui complexada por anos.
Nessa idade, comecei a fazer vários testes, pegava de duas as três conduções para chegar nos lugares. Minha mãe pedia dinheiro emprestado para os vizinhos e um vale adiantado para o chefe para arcar com os gastos. Trabalhei de graça dos 12 aos 16 anos no Brasil. Eu tirava foto, desfilava e participava de concursos de beleza. Aproveitava para fazer contatos e produzir material.
Pensei em desistir da carreira, mas passei em um teste e fui para a China
Meus pais se separaram. Eu, minha mãe e três irmãos saímos do lixão e moramos em 14 casas diferentes nas favelas de São Gonçalo. Teve um dia que choveu muito, a chuva arrancou todas as telhas de casa. Ao mesmo tempo, houve um tiroteio no meu portão. Naquele momento, eu percebi que não tinha mais condições de continuar daquele jeito, minha família se sacrificando por mim e eu sem nenhum retorno financeiro.
A Mega me chamou para participar de um casting internacional. Eu falei que seria meu último teste e que se eu não passasse eu ia desistir da carreira. Para minha surpresa, eu passei e meu destino seria a China. Meu pai era contra a viagem, disse à minha mãe que se algo de ruim acontecesse comigo, a culpa era dela. Ela respondeu que se eu tivesse sucesso, a ‘culpa’ também seria dela. Ela sempre teve a convicção de que iria acontecer, confiava no meu talento.
Fui para a China com 16 anos, sozinha, sem falar o idioma e com dois dólares no bolso. Minha adaptação foi boa, aprendi a falar inglês e chinês. Somente oito anos depois, entre idas e vindas dos dois países, é que me destaquei, me tornei referência no mercado de moda íntima chinês, e comecei a ganhar dinheiro.
Comprei uma casa para a minha família e abri uma agência de modelos com foco na diversidade
Para economizar, durante um ano e meio, comi milho todos os dias e realizei o sonho de comprar uma casa para a minha família no Brasil. Não sou rica, mas, dentro das minhas condições, ajudo financeiramente meus pais, meus irmãos e invisto na educação dos meus sobrinhos. Ano que vem vou casar e pretendo comprar uma casa para mim na Hungria.
Em 2014, fundei a Rio Model na China, que visa criar oportunidades de trabalho para meninas, de 15 a 25 anos, que sonham em ser modelos. Nosso diferencial é a diversidade. Trabalhamos com jovens morenas, negras, baixas e plus size. Temos parceiros no Brasil, na Índia, na Europa e nos Estados Unidos. Através do projeto Rio School, anualmente fazemos uma seleção com meninas da periferia do Rio de Janeiro. As que se destacam passam uma temporada de seis meses na China, onde aprendem a modelar, sobre a história da moda, a cultura do país e a falar inglês.
O conselho que deixo para elas é acreditar, ter fé, persistência, não absorver os comentários negativos e lembrar sempre da sua origem. Eu me orgulho de onde vim e o que vivi. Nunca tive preconceito ou vergonha. O lixão faz parte da minha história. Sou determinada e não deixei que minha realidade me limitasse ou me fizesse uma vítima da sociedade. Sempre olhei as coisas de uma forma construtiva e valorizei as minhas conquistas e derrotas. Sou grata à minha mãe e família que fizeram o possível e impossível para eu me tornar uma modelo”.
Você também tem uma história para contar? Ela pode aparecer aqui na Universa. Mande o resumo do seu depoimento, nome e telefone para minhahistoria@bol.com.br. Sua identidade só será revelada se você quiser.
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