De censura à cena de sexo: a evolução dos personagens LGBT nas novelas
De 1970 até a atualidade, os personagens LGBT de novelas brasileiras experimentaram de tudo. De papéis cômicos e censurados evoluíram para figuras respeitadas e cativantes, aumentaram de número e tiveram suas histórias e dramas cotidianos aprofundados. Veja:
Década de 1970
Personagens homossexuais sempre existiram na TV brasileira, mas, no começo das telenovelas, eram apresentados de forma velada. Para os especialistas em teledramaturgia, foi somente a partir dos anos 70 que a diversidade começou a mostrar suas caras assumidamente nas telinhas. O ator Ary Fontoura vivenciou o primeiro personagem gay em novelas, o costureiro e carnavalesco Rodolfo Augusto, de "Assim na Terra Como no Céu" (1970).
No livro "Bicha (Nem Tão) Má: LGBTs em Telenovelas", sua autora, a jornalista e pesquisadora na área de estudos de gênero e sexualidade Fernanda Nascimento, explica que na década de 1970 debates sobre LGBT eram mais contidos e quase nem se falava de direitos sexuais.
Também era comum, embora com pouco aprofundamento, a presença de personagens gays de classes populares, mais extravagantes e afetados na maneira como falavam e se vestiam. "A maioria destes gays eram personagens de núcleos cômicos", revela Fernanda.
Em "O Rebu" (1974), as personagens Roberta e Glorinha, interpretadas respectivamente pelas atrizes Regina Viana e Isabel Ribeiro, formaram o primeiro casal lésbico e LGBT da Rede Globo.
Já em "O Grito" (1975), o personagem Agenor, do ator Rubens de Falco, sofria por não se ajustar à sociedade da época. "Sua saída é utilizar roupas extravagantes à noite - entretanto, não foi possível descobrir se ele se travestia", observa Fernanda.
Outras telenovelas dessa década que tinham personagens LGBT eram "O Astro" (1978), "Dancin' Days" (1978) e "Marron Glacê" (1979).
Década de 1980
Segundo Marcelo Hailer, pesquisador sobre sexualidade, feminismo, gênero e diferenças, em seu livro "A Construção da Heteronormatividade em Personagens Gays na Telenovela", a primeira novela dos anos 1980 a abordar a homossexualidade foi "Brilhante" (1981).
"O personagem gay, Inácio (Dennis Carvalho), faz parte da trama central da história e é apresentado apenas como um sujeito masculino e não está carregado de códigos que remetam ao feminino", afirma Marcelo, lembrando que nesse período, a censura ainda vigorava no Brasil e até a palavra homossexual era proibida na TV.
A novela, embora controlada, se propôs a discutir as relações familiares, o preconceito e a discriminação contra identidades sexuais e de gênero não normativas.
A censura também afetou "Vale Tudo" (1988), onde a homossexualidade foi representada pelo casal lésbico Laís (Christina Prochaska) e Cecília (Lala Deheizelin). Havia até uma cena escrita para as duas contarem sobre os preconceitos que sofriam por serem lésbicas, mas foi cortada. Contudo, a novela conseguiu se posicionar como a primeira a tratar da discussão de direitos sexuais.
Essa década também é lembrada pela primeira participação de um homossexual negro nas telenovelas, Bob Bacall, de Jorge Lafond, em "Sassaricando" (1987), e por começar a dar visibilidade a pessoas trans e travestis, que não eram muito compreendidos, em novelas como "Um Sonho a Mais" (1985) e "Tieta" (1989).
Porém, devido à censura, quando os LGBT se destacavam, ganhando histórias com começo, meio e fim, logo precisavam voltar para o armário.
Década de 1990
Com o fim da ditadura, a comunidade LGBT brasileira avançou com sua luta por direitos e presenciou durante essa década o surgimento da sigla GLS, das paradas gays e dos debates a respeito da diversidade e que acabaram ganhando o Congresso Nacional e os meios de comunicação.
"Em 'A Próxima Vítima', Sílvio de Abreu tratou de um relacionamento homossexual sem caricaturas, com o romance gay e multirracial entre Sandrinho (André Gonçalves) e Jefferson (Lui Mendes). A cena em que Sandrinho revela a sua orientação para a mãe, Ana Carvalho, vivida por Susana Vieira, foi uma das mais esperadas e assistidas", observa o pesquisador de políticas, ativismos, direitos e temáticas LGBT e queer Leandro Colling, em seu estudo acadêmico "Personagens Homossexuais nas Telenovelas da Rede Globo".
A trama, de 1995, é um marco desse período e demonstra a tendência de maior visibilidade dos LGBT nas novelas, assim como a ampliação de debates sobre diversidade. Na mesma década, também destaca-se "Renascer" (1993), com Buba, a única intersexual das novelas.
Década de 2000
Com a virada do milênio, o número de personagens LGBT deu um salto. "O crescimento perceptível das últimas décadas se acentua nos anos 2000, quando 22 narrativas são produzidas com a participação de LGBTs. Nas novelas exibidas às 21h, desde 2003, todas apresentam pelo menos uma personagem LGBT", aponta Fernanda.
Em "América" (2005), a história de Júnior (Bruno Gagliasso) e o peão Zeca (Erom Cordeiro), com todo o envolvimento familiar, foi bastante debatida pelo país. Rubens e Marcelo, em "Páginas da Vida" (2006), foi o primeiro casal homossexual masculino a adotar uma criança nas telenovelas da Rede Globo. Já os casais de "Mulheres Apaixonadas" (2003) e "Senhora do Destino" (2004) também tiveram bastante repercussão social e, em comum, revelam a descoberta da sexualidade de mulheres adolescentes ou jovens.
Ramona, vivida por Claudia Raia, desponta como a primeira transexual assumida, rica e bem-sucedida sexual e amorosamente das novelas, em "As Filhas da Mãe" (2001).
Década de 2010
A partir de 2010, há uma diversidade grande de personagens em diversas faixas de horários de telenovelas. As principais a discutir a temática LGBT são "Ti-Ti-Ti" (2010), com foco em conflitos familiares, preconceito e direitos sexuais, e "Insensato Coração" (2011), que trazia sete personagens gays e uma lésbica. Nessa novela, Gilvan (Miguel Roncato) foi a primeira vítima fatal de homofobia.
Em 2011, o SBT também rompeu com a tradição dos tímidos selinhos LGBT e promoveu o primeiro beijo longo e real protagonizado por duas personagens lésbicas, em "Amor e Revolução".
Nos anos seguintes, em "Amor à Vida" (2013), o vilão Félix, interpretado por Matheus Solano, fez tanto sucesso com o público que encerrou a trama redimido de seus erros e até ganhou um companheiro, Niko (Thiago Fragoso) em quem deu o primeiro beijo gay romântico da Globo.
Pouco tempo depois, Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg protagonizam o casal lésbico de idade mais avançada das novelas, em "Babilônia" (2015). Embora o primeiro casal LGBT da terceira idade em uma novela tenha sido Quintino e Silvano, de "Sabor da Paixão" (2003).
No ano seguinte, em 2016, os atores Caio Blat e Ricardo Pereira fizeram história. Em "Liberdade, Liberdade", os dois encenaram o primeiro ato sexual gay da dramaturgia da Globo.
Quanto à transexualidade, esta ganhou destaque em várias novelas, "Fina Estampa" (2011), "Aquele Beijo" (2011), "Salve Jorge" (2012) e "A Força do Querer" (2017), são alguns dos exemplos. Esta última, por meio da personagem Ivana, vivida por Carol Duarte, abordou os desafios e a questão da transformação do corpo para se readequar ao gênero auto percebido.
Fontes: Sites Memória Globo, teledramaturgia.com.br, livros "Bicha (Nem Tão) Má - LGBTs em Telenovelas", de Fernanda Nascimento, jornalista e pesquisadora na área de estudos de gênero e sexualidade (PUC-RS); "A Construção da Heteronormatividade em Personagens Gays na Telenovela", de Marcelo Hailer, pesquisador sobre sexualidade, feminismo, gênero e diferenças (PUC-SP), e estudo "Personagens Homossexuais nas Telenovelas da Rede Globo", de Leandro Colling, pesquisador de políticas, ativismos, direitos e temáticas LGBT e queer e criador e coordenador do grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade (politicasdocus.com).
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