No tempo do Pinel, mulher que queria divórcio era internada como "louca"
Parece coisa de séculos atrás, mas foi em 1930. Uma paulistana, casada, de 28 anos, começou a ler livros sobre direitos das mulheres e emancipação feminina. A família e o marido notaram uma mudança de comportamento. Ela, que até então era "dotada de temperamento dócil", depois das leituras "passou a mostrar-se independente, voluntariosa". Tentou deixar o companheiro, fugiu para o Rio de Janeiro, mas foi trazida de volta por um irmão. Queixava-se de "maus-tratos" no casamento.
Queria se separar, gostava de outro. Não era bem vista. Uma mulher lendo os livros que bem entende? E querendo se desquitar? A jovem acabou internada no Sanatório Pinel, um dos mais famosos hospitais psiquiátricos do país -- o mesmo que deu origem ao uso da palavra pinel como sinônimo de "pessoa louca, amalucada", segundo o dicionário Houaiss.
De dentro do sanatório, escreveu uma carta a um familiar, comentando a visita de outro. Havia recebido o conselho de se suicidar porque a família não tinha dinheiro para pagar seu tratamento. Decidida, afirmou: "Vou te dizer com toda franqueza. Não quero saber de vocês, pois posso trabalhar. Arranjo emprego em casa de família".
"Uma mulher que levantasse sua voz, como essa fez, ia ser segregada para não contaminar as outras, seguindo o princípio da higiene mental vigente na época", afirma Antonio Ackel, que compilou 30 cartas de pacientes do Pinel para sua dissertação de mestrado na USP (Universidade de São Paulo), prevista para publicação em abril de 2019.
Sob esse o argumento, quem não seguia os padrões comportamentais era visto como um criminoso em potencial. E, definitivamente, a emancipação feminina era tema de pessoas que tinham algum desvio de caráter. Não havia direito ao voto, quem dirá ao divórcio. "Para manter a pureza da sociedade, elas eram segregadas", conta o pesquisador. Qualquer desvio era visto como um problema e, até mais do que isso, doença. Por isso, em 1930, o sanatório Pinel era o destino de mulheres e gays.
"Tendências para práticas homossexuais"
A história de outro paciente mostra como os gays eram vistos na época. Um homem rico, de 25 anos, "esforçado e trabalhador", saiu da casa que morava com a família para viver na companhia de outro homem.
O prontuário dizia que ele tinha "tendência para práticas homossexuais", uma situação "deprimente e humilhante não só para o paciente, como para toda a família". Foi levado ao sanatório pela polícia. Depois de um tempo, tentou resolver a situação: escreveu para o pai, dizendo-se "regenerado" e, à mãe, afirmou que era tudo um mal-entendido. O namorado recebeu uma mensagem romântica, com juras de amor eterno.
Mulheres escreviam menos por serem menos instruídas
Das 30 cartas analisadas por Ackel, sete eram de mulheres. Os homens eram médicos e engenheiros, mas elas, todas donas de casa. Os motivos pelos quais foram internadas eram variados, mas vários indícios do machismo da época aparecem nas mensagens.
Uma paciente diz ter sido internada depois de descobrir a traição do marido com a irmã dela. E, aparentemente, ele queria se livrar da mulher para viver com a amante. Chega a escrever que ele, quando a visitava, tentou matá-la e "engravidar-me traiçoeiramente" -- o que poderia significar uma tentativa de estupro.
Sobre essa senhora, Ackel afirma que suas cartas, com o passar dos meses, foram ficando desconexas. "A letra se deteriorou, a narrativa começou a ficar em sentido. A certa altura, ela chegou a escrever: 'Já nem sei mais quem eu sou'", relata. "Não é possível dizer exatamente o que aconteceu, não há tanta informação registrada, mas pode ser que ela tenha ficado assim depois de tanto remédio."
Outra, desprezada pelo marido e pela família, afirmava que não queria se separar por medo de ser vista na rua e ser alvo de dó. "Vão falar: 'Coitada daquela ali, solteira'".
Sobre o Pinel
O sanatório foi fundado em 1929 pelo médico Antonio Carlos Pacheco e Silva, em São Paulo. O nome era uma homenagem ao psiquiatra Philippe Pinel. Virou hospital psiquiátrio em 1994. Em 2008, passou a se chamar Centro de Atenção Integrada em Saúde Mental, e é administrado pela Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo.
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