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"Sou trans, já fui viciada e prostituta; hoje trabalho com Pabllo Vittar"

Rafa com Pabllo Vittar - Divulgação
Rafa com Pabllo Vittar Imagem: Divulgação

Vanessa Fajardo

Colaboração para Universa

14/01/2019 04h00

Desde criança, Rafa Vilela, de 29 anos, não se identificava como menino. Achou que era homossexual e levou um tempo para entender que se via como mulher, era transexual. A família evangélica, de início, não aceitou seu processo de transição. Saiu de casa, perdeu o emprego e entrou na prostituição.

Casou-se com um de seus clientes mas, ao ser abandonada por ele, teve depressão e começou a se drogar. Rafa se reergueu por meio da música, sua válvula de escape desde os tempos de bullying na escola. Hoje trabalha como backing vocal da cantora Pabllo Vittar. Veja abaixo os detalhes sobre sua história.

"Sou filha única e minha família é toda protestante, meu pai é pastor, minha mãe regente e musicista. A música sempre esteve presente na minha vida, estudei piano e cresci cantando nas igrejas do Rio de Janeiro.

Desde criança sabia que tinha algo diferente em mim, mas não sabia me expressar. Achei que fosse gay. Tenho memória de aos 7 anos falar sobre isso com a minha mãe. Na puberdade, esse sentimento aflorou. Gostava de colocar vestido e usar roupas de mulher, mas sempre escondido. Não gostava de ser menino, mas nos anos 2000 esse assunto era muito tabu, e não havia tanta informação na internet.

Na escola, as pessoas me chamavam de menina. Eu faltava muito, cheguei a repetir de ano por falta. Evitava a escola, mas meus pais não sabiam dessa aflição. Nesses momentos, eu recorria à música, gostava de cantar e compor.

Sempre tive uma família considerada padrão e unida, nunca gostei de mentir para os meus pais. Eles sabiam o que estavam acontecendo dentro de casa, mas ignoravam o fato de ter uma criança feminina, acho que não imaginavam que eu era transexual. A religião passa a ideia de que era algo errado. Eles me amavam, mas não concordavam.

A transição

Mesmo dentro do meu grupo que ainda sofre preconceito, posso dizer que sou privilegiada. Coordenei uma escola de inglês no Rio de Janeiro e tive oportunidade de ir para o exterior, morei na Nova Zelândia e na Inglaterra. Lá fora, ainda como menino, entendi a questão do meu gênero. Tive um namorado hétero que me enxergava como menina. Dentro de casa usava vestido, lingerie. Voltei resolvida a fazer a transição no Brasil, embora soubesse das consequências.

No Brasil, no retorno, em todos os meus encontros amorosos já me via como mulher, nas festas gostava de me montar, mas no trabalho e para a família ainda era o Rafael. Era uma vida dupla, foram uns dois anos assim. Até que eu comecei a fazer a transição com o processo hormonal. Nos primeiros meses, a pele fica fina, o cabelo cresce demais, foi nítida a transformação. Os seios saltam. Comecei a ficar meio andrógena e passei a usar roupas unissex.

Quando os primeiros sinais começaram a ficar evidentes, fui demitida. Meu trabalho era excelente, e lembro como se fosse hoje o dia da demissão. Todo mundo sabia da minha transição.

Também falei com meus pais, me abri com eles e o que ouvi foi que se eu não quisesse mais ser o Rafael, teria de ser dali para fora. Dentro de casa, não poderia ser a Rafaela, e para mim internamente eu já era uma mulher, por isso foi natural.

Prostituição

Sabia que a única forma de conseguir um dinheiro rápido para patrocinar minha transição, que não é barata, era por meio da prostituição. Conheci uma menina trans que se tornou minha madrinha. Fui morar com ela, ganhei uma família de consideração, ela me ensinou tudo que eu deveria fazer, mas nunca me forçou a ser uma garota de programa, embora ela fosse.

Depois de três meses vendo aquela mulher linda, de classe, com seios de silicone, ela parecia uma gueixa, também entrei para aquele mundo. Me desliguei da minha família por três anos, nesta época a música ficou esquecida.

Todo dia tinha pelo menos um cliente, cabia a mim resolver se queria mais, se aguentaria outros. Mas tem um momento que você entra no automático. Cheguei a fazer cinco, seis programas por dia, 99% dos meus clientes eram homens heterossexuais casados. Às vezes rolava sexo com casais também.

A maioria das meninas não gosta de estar ali, você se sente excluída, piora se é uma mulher trans. As pessoas te veem como um pedaço de carne. Sempre ouvi histórias de violência com garotas de programa, mas acho que acontece mais na rua. Comigo a única coisa que aconteceu uma vez é que um cliente queria transar sem camisinha, insistiu e ameaçou partir para a brutalidade. Mandei ir embora da minha casa. E ele foi.

Casamento, cocaína e mais sexo

Me apaixonei por um cliente e nos casamos, bem no estilo 'Pretty Woman', ele é milionário, largou a família e me assumiu. Durou dois anos, foi uma fase boa, me aproximei dos meus pais e rolou até um pedido de perdão deles.

Mas meu ex não aguentou a pressão financeira, a família era muito rica, a mãe dele chegou a me ligar oferecendo dinheiro para eu sumir. Ele terminou comigo. Me vi sozinha novamente, entrei num quadro depressivo e comecei a usar drogas.

Fui morar na Lapa [bairro boêmio carioca] em uma pensão, e voltei a me prostituir. Lá o programa é bem mais barato. Estava superdepressiva, comecei a usar cocaína, o que é bem comum entre as meninas porque ajuda a ficar acordada. Assim, conseguia atender às 3h da manhã, às 8h da manhã, qualquer hora, porque a droga te mantém em pé. Só que num desses dias que usei muito, minha pressão subiu, tive uma pré-overdose e fui parar no hospital. Uma das meninas me socorreu.

Cantar com Pabllo Vittar

Acho que foi nesse momento que eu caí na real, eu acredito em Deus e precisava de um novo rumo na vida. Voltei para meu apartamento, já tinha visto um vídeo da Pabllo Vittar, e comecei a seguir um produtor dela nas redes sociais, o Diego Timbó. Ele também começou a me seguir, uma vez ele fez uma 'live' eu entrei, e ele me chamou para uma audição. Depois me convidou para trabalhar na produtora dele na produção de arranjo musical, na criação musical, em março do ano passado. Ele, a Iza, o Dilsinho, a Luísa Sonza e a Cleo abriram muito espaço para mim.

No fim do ano passado a Pabllo estava precisando de uma backing vocal. Ela queria uma trans e me ouviu cantar. Ela é um ícone LGBT de representatividade, quando eu fazia programa, ouvia a música dela e me trazia uma esperança. Nosso encontro foi emocionante. Estar diante dela depois de todo esse rolê... comecei a chorar. Agora a Pabllo virou minha madrinha musical.

Rafa com Cléo Pires - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Com Cleo, que deu força em sua carreira como cantora
Imagem: Arquivo pessoal

Meu primeiro ensaio com a banda foi em Uberlândia. A estreia da nova turnê foi no Cine Joia, em São Paulo, em novembro do ano passado. Estar em um palco de novo foi muito importante. Já tinha feito eventos grandes no estilo gospel, ainda como menino, mas agora com o público LGBT, a galera vibrando, é uma pegada de show intensa.

Trabalhar com a Pabllo é surreal. Acho que como trans você pode ser cantora, advogada, médica, qualquer coisa, essa é a mensagem que tento levar, independente do que você é. O fato de você ser trans não pode fechar as portas, mas temos um caminho a percorrer.

Esse ano vou lançar um EP com cinco músicas próprias, autores de grandes hits já se propuseram a me ajudar. Até o primeiro semestre quero lançar um clipe também, mas sigo com a Pabllo ainda por enquanto. Não criei uma independência financeira, agora tento buscar, quero ter meu dinheiro, minha profissão.

Hoje estou solteira e minha relação com meus pais é ótima, eles têm bastante orgulho de mim. Eu nunca bati de frente com eles e com amor conseguimos construir um diálogo. Continuo cristã, nunca perdi a fé na vida, e nunca enxerguei meus problemas de forma revoltada. Meus pais viram que como cristãos era mais incoerente separar do que unir, mas muitas pessoas da minha família deixaram de falar comigo.

Meu maior motivo de vida é mostrar que o caminho é duro, mas não existe obstáculo para ser quem você quiser. Ninguém está sozinha, estamos juntas no mesmo barco. Me inspiro todos os dias nas minhas irmãs que estão na rua, se prostituindo e na galera LGBT que dá a cara a tapa e milita. Vamos fazer uma geração melhor nos próximos anos."