"Vi a droga desmanchar meu filho", diz mãe que criou um blog sobre vício
O olhar perdido de dentro do ônibus encontrou um rosto familiar passando na rua. A gaúcha Neusa Brotto, de 47 anos, reconheceu o filho, Douglas, de 27, de bicicleta, entrando em um beco onde ela sabia existir uma boca de fumo. Foi em novembro de 2018, na cidade de Tapes, no Rio Grande do Sul, onde o rapaz morava e ela estava, a passeio, para visitá-lo.
Neusa tinha acabado de embarcar para voltar para sua casa, em Porto Alegre, e a viagem de uma hora e meia foi preenchida pelo choro de uma mãe desesperada. "Ele mentia, dizia que tinha parado de usar cocaína", diz. "A sensação foi de vê-lo indo para o matadouro porque, se não parasse, só teria dois fins: ser preso ou ser morto."
O rapaz já havia passado por duas internações por causa do vício, que começara a dar sinais seis anos antes, em 2012. Quando Neusa descobriu, fez a pergunta clássica: "Onde eu errei?". Depois de ler sobre o assunto e frequentar encontros de familiares de dependentes químicos, diz ter mudado sua visão sobre o assunto. "Eu tinha preconceito com usuários de drogas antes disso bater na minha porta", conta. "Hoje sei que é uma doença incurável, como diabetes. Convenci Douglas a passar pelo terceiro tratamento e ele voltou a morar comigo."
Para ajudar pessoas na mesma situação, Neusa criou um blog e mantém um grupo no WhatsApp chamado Codependentes Unidos.
Leia abaixo a história de Neusa.
"Uma noite, em 2012, um amigo do meu filho me ligou dizendo que chamaram uma ambulância do Samu porque o Douglas estava passando mal. A ambulância passou para me pegar e, quando o encontrei, ele estava com o olho inchado e alucinado. Gritava dizendo que me amava. No hospital, disse que bebeu e fumou maconha. Fiquei muito assustada; para mim ele nem bebia. Mas achei que fosse uma situação isolada e não iria se repetir.
O Douglas sempre foi educado, me obedecia, tinha boas notas na escola. O pai dele era alcoólatra e pedi que saísse de casa quando meu filho tinha 10 anos. Não era violento, mas vivia embriagado. Não queria meus filhos crescendo nesse ambiente. Ele foi morar em outra casa.
"Ou você se interna ou chamo a polícia"
Passei a desconfiar que Douglas estava usando drogas e, um dia, mexendo nas suas gavetas, encontrei saquinhos plásticos. Tive certeza que era usuário de cocaína. Mas só ouvi isso dele quando fomos para uma comunidade terapêutica para ele ser internado. Quando perguntaram, ele respondeu e eu estava do lado.
Na época, o Douglas estava morando com o pai, que me ligou dizendo que o filho estava roubando as coisas da mulher dele. Fui até lá e disse: "Ou você se interna ou eu chamo a polícia". Foi em agosto de 2013. Deixei meu emprego em Porto Alegre e fui morar em Tapes, a cidade onde fica essa comunidade terapêutica.
Comecei a estudar sobre dependência química e a frequentar as reuniões de um grupo chamado Amor Exigente, que existe para ajudar famílias de dependentes químicos. A partir daí mudei meu comportamento, passei a ouvi-lo mais e cobrar menos, e foi mais fácil identificar quando ele tinha recaídas.
Blog sobre dependência química e grupo no Whatsapp
Quando que ele foi internado pela primeira vez, criei um blog onde escrevo o que acontece na relação com meu filho. Recebo muitas mensagens, pedidos de ajuda, mães querendo saber o que fazer. Criei um grupo de WhatsApp com 81 pessoas, de todo Brasil -- a maioria mulheres. Me perguntam onde internar, como agir quando a pessoa some. Dou informações, acho que isso é o mais importante: conhecimento.
Entendo que falta conhecimento para as pessoas. Eu também tinha o preconceito, achava que quem usava drogas era vagabundo, não tinha educação. Mas quando bateu na porta vi que não era bem por aí. A pessoa pode ter a melhor educação, se tem a predisposição para a dependência, vai acontecer.
E não tem como saber se vai ter isso ou não, não está escrito na testa que vai virar dependente, não tem como saber.
Com o tempo fui adquirindo essa noção. É uma doença incurável. Meu filho tem muita consciência de que ele precisa de ajuda, ele pede ajuda. Precisamos entender que o dependente tem uma dor imensa porque quer parar, mas não consegue. É uma luta diária dele, e a família luta junto.
"Adoeci junto com meu filho"
O comportamento dele era clássico de dependentes, de usar os sentimentos para me fazer ficar com pena e deixá-lo fazer o que quisesse. Percebi que adoeci junto com meu filho. Pensava nele 24 horas. Me afastei da minha filha, esqueci da minha vida. Tinha um bom emprego que larguei para ajudá-lo. Fiz o que podia e que achei que tinha que fazer, mas estava mal.
Nos encontros do Amor Exigente e nas minhas pesquisas aprendi que precisava viver minha vida independentemente das escolhas que ele fazia.
Não foi fácil, via meu filho se desmanchando, mas não tinha o que fazer. Tentava ajudar mas ele não aceitava. Entendi que precisava estar bem para ajudá-lo.
Em 2015, voltei para Porto Alegre para ficar com minha filha que engravidou. Falava com Douglas por telefone e consegui fazer com que ele passasse pela segunda internação, na mesma comunidade terapêutica. Nessa época eu deixava ele falar, mesmo sabendo que podia ser mentira. Deixava quieto. Aprendi que não adiantava brigar.
Mas não deixei de falar com firmeza. Isso ajudou muito a convencê-lo a procurar ajuda. Disse: "Você vai acabar ficando sozinho, sem tua família". Ele passou mais nove meses em tratamento.
Nos três anos que seguiram, sabia que ele não tinha parado de usar. Às vezes eu falava sobre o assunto, ele dizia que ia parar, que ia resolver sozinho. Só escutava. Eu ia visitá-lo e nos falávamos por telefone.
Ao flagrar o filho indo comprar drogas, a sensação era de vê-lo indo para o matadouro
Em novembro passado, fui visitá-lo em Tapes e me desesperei. Passei o final de semana com ele e a mulher e combinamos que ele viria comigo para Porto Alegre. Quando estava na rodoviária, ele ligou dizendo que ia pegar o ônibus mais tarde. Eu sabia que era mentira. Meu ônibus partiu e em um momento, quando olhei para fora, vi o Douglas de bicicleta. Sabia que ali tinha uma boca de fumo.
A sensação era de que ele estava indo para o matadouro porque sei que tinha só duas consequências: ou ela ia preso ou morreria. Chorei a viagem toda. Cheguei em casa e liguei para ele.
Ele já tinha dito que estava pensando em se separar e que queria voltar a morar comigo. Fui firme: "Você só vem se estiver limpo". Ele aceitou e começou um terceiro tratamento, pelo SUS, em um hospital aqui em Porto Alegre, em novembro do ano passado. Passou por psiquiatra, psicólogo, fez exame, está sendo medicado. Voltou para minha casa no dia 20 de dezembro. É uma situação nova. As coisas ainda estão se encaixando. Sempre pode ter recaída, e aí, o que vamos fazer?
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