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Por passado trágico, elas são símbolo do combate à violência contra mulher

Divulgação/"Claudia"
Imagem: Divulgação/"Claudia"

Heloísa Noronha

Colaboração com Universa

24/01/2019 04h00

Aos 74 anos de idade, a farmacêutica cearense Maria da Penha Maria Fernandes é conhecida de norte a sul do país. Vítima de violência doméstica, ela enfrentava um casamento abusivo quando, na manhã de 29 de maio de 1983, enquanto dormia, foi alvejada com um tiro nas costas pelo marido. Ela ficou paraplégica. Após quatro meses hospitalizada, teve de voltar para casa e sofreu nova tentativa de assassinato. Aproveitando uma viagem do parceiro, se mudou com as três filhas para a casa dos pais.

Em 1994, publicou a autobiografia "Sobrevivi... Posso Contar", livro que se tornou um importante instrumento na luta contra as agressões à mulher. Por conta da obra, o Brasil foi condenado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) e teve de adotar diversas medidas para reduzir a violência de gênero --uma delas, a chamada Lei nº 11.340/2016, conhecida como Lei Maria da Penha, tida pela ONU (Organização das Nações Unidas) como uma das três melhores do mundo em vigor. Seu ex-marido foi preso, mas cumpriu parte da sentença no regime semiaberto. E ela continua firme e forte no ativismo, inspirando outras cidadãs. Assim como Maria da Penha, outras mulheres com histórias trágicas se tornaram símbolo de uma luta que, conforme indicam as estatísticas, infelizmente ainda está bem longe de acabar.

Malala Yousafzai

Malala Yousafzai - Eduardo Anizelli/Folhapress - Eduardo Anizelli/Folhapress
Imagem: Eduardo Anizelli/Folhapress

Com apenas 17 anos, em 2014, a paquistanesa Malala Yousafzai se tornou a pessoa mais jovem a conquistar o Prêmio Nobel da Paz. Sua trajetória calcada em otimismo e resistência teve início em 2008, quando o movimento fundamentalista islâmico Talibã proibiu 50 mil garotas do Vale Swat de ir à escola. Seu pai, então, começou uma campanha a favor dos estudos para todos --Malala, aos 11 anos, também discursava e começou a escrever um blog para a BBC relatando o que acontecia. O primeiro post começa assim: "Estou com medo". Com a promessa do governo do Paquistão de proteger as escolas, Malala retornou às aulas.

Sob a justificativa de que a menina representava uma ameaça ao Islã, um homem do grupo talibã disparou três tiros em sua direção, enquanto ela seguia num ônibus escolar. Baleada na cabeça, foi transferida para o Reino Unido e, durante dez dias, foi mantida em coma induzido. Recuperada, sem sequelas, Malala reforçou seu ativismo e se tornou conhecida no mundo todo. Sua história pode ser conferida em diversos livros, como o autobiográfico "Eu sou Malala - A História da Garota que Defendeu o Direito à Educação e Foi Baleada pelo Talibã" (2013) e "Malala, a Menina que Queria Ir Para a Escola" (2015), de Adriana Carranca.

Waris Dirie

Waris Dirie - Leticia Moreira/TBA - Leticia Moreira/TBA
Imagem: Leticia Moreira/TBA

A modelo, hoje com 54 anos, nasceu num vilarejo da Somália e, aos cinco anos de idade, teve a genitália mutilada. A prática, comum em certas comunidades do país, serve para inibir o prazer sexual feminino através da extração do clitóris. Em entrevistas, ela conta que aquele foi o pior dia de sua vida e que quase morreu por causa do sangramento após o corte. Dirie fugiu da Somália quando tinha 13 anos, pois teria de se casar com um homem bem mais velho, e passou a morar em Londres.

Descoberta quando trabalhava numa lanchonete, tornou-se modelo e passou a usar seu trabalho e a fama para denunciar as atrocidades com as meninas de seu país. Escreveu vários livros sobre suas experiências, foi tema do filme "Flor do Deserto" (2009) e atualmente é embaixadora da ONU, além de administrar uma fundação que leva seu nome.

Jyoti Singh (1989-2012)

Jyoti Singh - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Em dezembro de 2012, o estupro coletivo da estudante de fisioterapia de 23 anos causou revolta em todo o mundo. A jovem indiana estava em um ônibus na capital Nova Déli, voltando do cinema com um amigo, quando foi agredida e estuprada com requintes de crueldade por seis homens, incluindo o motorista e um menor. O rapaz também foi agredido. A violência sexual foi tão brutal que vários dos órgãos internos foram prejudicados: seu útero foi perfurado por uma barra de ferro e, após cinco cirurgias, seu intestino teve que ser retirado --segundo consta, os estupradores queriam arrancá-lo pela vagina. Ambos foram atirados do ônibus nus e empapados de sangue. Jyoti permaneceu 13 dias internada e morreu por falência múltipla de órgãos. 

A indignação e os protestos públicos levaram à aprovação de uma emenda à legislação criminal que entrou em vigor em abril de 2013, menos de cinco meses após o ocorrido. A lei ampliou a definição de estupro, endureceu as penas para casos seguidos de morte e tornou crime sexual ações como ataques com ácido, assédio sexual e voyeurismo. Todos os agressores de Jyoti foram presos. Um supostamente se suicidou sob custódia policial e o menor voltou à liberdade após cumprir três anos de prisão em regime juvenil. Os quatro restantes foram condenados à morte. Com produção e direção de Leslee Udwin, o documentário "A Filha da Índia" (2015) não só refaz o sofrimento de Jyoti com riqueza de detalhes como mostra, através de depoimentos (inclusive o do motorista do ônibus), que a vida de uma mulher vale muito pouco --ou quase nada-- na Índia. Ou seja, que não bastam leis mais severas se as mentalidades não forem modificadas. "Garotas são mais responsáveis pelo estupro do que os rapazes", diz, à certa altura, o criminoso.

Eliane de Grammont (1955-1981)

Eliane de Grammont - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Na madrugada de 30 de março de 1981, enquanto se apresentava no Café Belle Époque, em São Paulo (SP), a jovem cantora levou um tiro pelas costas. Ela chegou a ser levada a um pronto-socorro, mas já chegou ao hospital sem vida. O assassino foi seu ex-marido, o cantor Lindomar Castilho, conhecido como o "Rei do Bolero", com quem ficou casada por pouco mais de um ano e teve uma filha. A relação acabou por conta do alcoolismo de Lindomar --as bebedeiras o levavam a ficar ainda mais abusivo e violento. 

A "motivação" para o crime foi o fato de Eliane ter iniciado um romance com o violonista Carlos Randall, seu colega de banda e primo de Lindomar. Quando foi alvejada, ela cantava a música "João e Maria", de Chico Buarque, justamente os versos que dizem "Agora era fatal que o faz-de-conta terminasse assim". Durante o julgamento, a defesa do cantor alegou que Eliane era uma mãe negligente, uma mulher de conduta duvidosa e que ele havia agido sob "violenta emoção" e "em nome da honra". Do lado de fora do tribunal, mulheres protestavam enquanto homens lhes atiravam ovos e gritavam atrocidades como "mulher que bota chifre tem que virar sanduíche". 

Na época, o Código Penal Brasileiro entendia o adultério como crime --só em 2005 deixou de ser. Mortes violentas como a de Eliane produziram várias manifestações contra os feminicídios em defesa da "honra masculina". Após uma missa em sua homenagem celebrada na Igreja da Consolação no dia 4 de abril de 1981, mais de mil mulheres vestidas de preto marcharam em protesto com palavras de ordem como "Quem ama não mata", até o Cemitério do Araçá. O episódio também culminou no surgimento de diversas instituições em prol dos direitos femininos. Lindomar foi condenado a 12 anos de prisão, ganhou liberdade em 1996 e mora em Goiás (GO).

Aesha Mohammadzai

Aesha Mohammadzai - Reprodução/TIME - Reprodução/TIME
Imagem: Reprodução/TIME

Aos 18 anos, a afegã protagonizou uma das capas da revista norte-americana "Time" mais famosas --e perturbadoras-- de todos os tempos. Olhando diretamente para a câmera com seus olhos escuros, Aesha Mohammadzai tinha um enorme buraco onde devia estar o nariz. O longo cabelo preto escondia também a ausência das orelhas. Quando tinha apenas 12 anos, a moça foi obrigada pelo pai a se casar com um membro do Talibã para pagar uma dívida. 

Ela foi viver com a família do noivo, que a abusava e a forçava a dormir num estábulo com animais. Ao tentar fugir, Aesha foi pega pelo marido pelos cunhados, levada para uma montanha e teve as orelhas e o nariz cortados como castigo. Após ser tratada durante dez semanas numa unidade médica americana, Aesha viveu em um abrigo em Cabul e, em agosto de 2010, voou para os Estados Unidos, onde ganhou asilo político em 2011, recebeu atendimento psicológico e teve o rosto reconstruído.

Aracelli Cabrera Crespo (1964-1973)

Aracelli Cabrera Crespo - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Em 2000, o dia 18 de maio foi constituído pela Lei Federal n° 9.970 como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. A data foi escolhida em razão de um dos crimes mais hediondos que aconteceram no país, o Caso Aracelli, em 1973, ocorrido em Vitória (ES). Araceli Cabrera Crespo tinha apenas 9 anos de idade quando foi espancada, torturada, drogada, estuprada e morta. Seu corpo --em especial, o rosto-- foi desfigurado com ácido e encontrado seis dias depois nos fundos do Hospital Infantil de Vitória. 

Durante três anos os restos da menina permaneceram no IML (Instituto Médico Legal), porque ninguém ousava em mexer no caso. Os criminosos, segundo se soube depois, pertenciam a famílias ricas e importantes da cidade e mantiveram Aracelli em cárcere privado durante dois dias. Sob efeitos de drogas, arrancaram pedaços da vagina, da barriga e dos seios da menina, além de terem deslocado seu queixo com um murro. A própria mãe de Araceli a enviara para a morte ao mandar a menina, que não suspeitava de nada, entregar um envelope com drogas para os rapazes. Em 1980, o juiz responsável pelo caso, Hilton Silly, condenou todos os acusados pelo crime, mas eles recorreram da decisão. 

O Tribunal de Justiça do Espírito Santo anulou a sentença e, tempos depois, o juiz Paulo Copolilo absolveu os acusados por falta de provas. O livro investigativo "Aracelli, Meu Amor" (1976), de autoria do escritor e jornalista José Louzeiro (1932-2017), foi censurado durante a Ditadura Militar a pedido dos advogados dos acusados.

Irmãs Mirabal (1924/26/35-1960)

Irmãs Mirabal - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

O Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher celebra-se em 25 de novembro para denunciar a violência contra as mulheres no mundo todo e exigir políticas para sua erradicação. A escolha deve-se aos esforços do movimento feminista latinoamericano em 1981 para marcar a data em que foram assassinadas as irmãs Mirabal na República Dominicana. Em 1960, as ativistas políticas Patria, Minerva e María Teresa foram assassinadas por ordem do ditador dominicano Rafael Leónidas Trujillo. Uma quarta irmã, Adela, morreu em 2014. Como tinha um papel menos ativo na oposição, conseguiu salvar-se. "El Jefe", como era chamado Trujillo", costumava assediar Minerva. 

Em 1957, ao se tornar a primeira doutorando em Direito do país, ela teve a infelicidade de receber o diploma das mãos do próprio "El Jefe", que avisou que Minerva jamais conseguiria exercer a profissão. Com a alcunha de "Las Mariposas", as irmãs lutaram para destronar Trujillo. Foram encarceradas, torturadas e presas por cinco anos. Seus maridos permaneceram presos. No dia 25 de novembro de 1960, a caminho da prisão para visitá-los, um carro cortou o caminho das três. Os bandidos as massacraram a golpes de facão, recolocaram os corpos no jipe onde estavam e o lançaram num abismo.

Ângela Diniz (1944-1976)

Angela Diniz - Acervo UH/Folhapress - Acervo UH/Folhapress
Imagem: Acervo UH/Folhapress

Conhecida como a "Pantera de Minas", Ângela era uma das mais belas socialites de sua época. Em 1975, após terminar o namoro com o colunista social Ibrahim Sued, ela teve um namoro-relâmpago de quatro meses com o "playboy" Raul Fernando do Amaral, conhecido como Doca Street. Embora curta, a relação foi marcada por discussões por ciúmes e agressões. No dia 30 de dezembro de 1976, na sua casa na praia dos Ossos, em Búzios (RJ), Ângela morreu depois de receber de Doca três tiros no rosto e um na nuca.

Na época, a maneira como a imprensa tratava Ângela --bonita, fútil, egoísta e devassa-- e o machismo vigente na sociedade contribuíram para a absolvição de Doca por "legítima defesa da honra". A moral "duvidosa" da socialite teria sido, segundo a sentença, a justificativa para uma atitude tão extremada. Doca saiu do fórum sob aplausos, mas após um intensa pressão dos movimentos feministas --e da criação da campanha "Quem ama não mata"-- houve um segundo julgamento e Doca Street foi condenado a 15 anos de prisão.

Linda Lovelace (1949-2002)

Linda Lovelace - AP Photo/File - AP Photo/File
Imagem: AP Photo/File

Lançado em 1972, "Garganta Profunda" fez enorme sucesso e até hoje desfruta do status de pornô "cult". Por trás da história da garota que tem o clitóris na garganta --e por isso precisa fazer sexo oral em pênis monumentais para atingir o orgasmo-- existe um enredo repleto de humilhação, violência e prostituição forçada na vida real. A protagonista, Linda Lovelace, viveu durante anos um relacionamento abusivo com o marido, Chuck Traynor, com quem se casou aos 20 anos de idade. 

No início, Traynor se mostrava carinhoso e romântico. Com o tempo, porém, passou a humilhar e agredir a mulher, a quem mantinha em cárcere privado. Ele também obrigava Linda a ir para a cama com seus amigos, a fazer programas e a atuar em filmes pornográficos --em um deles, a moça teve de transar com um cachorro. Em 1973, ela conseguiu fugir e denunciou Traynor à polícia. Desesperada e sem conseguir emprego, continuou como atriz pornô em produções mais leves. Em 1980, Linda lançou a autobiografia "Ordeal", na qual relata tudo o que sofreu: estupros, violência doméstica, prostituição e pornografia forçada. A obra foi crucial para que o Congresso norte-americano investigasse irregularidades na indústria pornográfica. Embora "Garganta Profunda" tenha sido altamente lucrativo para os padrões da época, Linda Lovelace jamais ganhou um centavo pelo trabalho. A história de seu romance abusivo pode ser conferida no filme "Lovelace" (2013), com Amanda Seyfried no papel-título.

Aída Curi (1939-1958)

Aída Curi - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Ao sair da aula do curso de datilografia, no dia 14 de julho de 1958, Aída Curi e uma amiga foram abordadas por dois rapazes, que à certa altura pegaram os óculos e a bolsa da moça e entraram no Edifício Rio Nobre, na Avenida Atlântica, na capital carioca. Aída foi puxada para dentro do elevador e, durante trinta minutos, foi espancada violentamente (seu lábio superior chegou a romper por dentro) e sofreu uma tentativa de estupro --ela lutou até a exaustão e evitou o abuso. Segundo investigações, ela acabou desmaiando. Os criminosos jogaram seu corpo do terraço, a fim de simular suicídio.

O porteiro do prédio também foi acusado de participação no crime, que causou enorme choque na época --a revista "O Cruzeiro" publicou em página dupla a fotografia da moça estatelada no chão. Aída foi homenageada por Rita Lee na música "Todas as Mulheres do Mundo" e por Ângela Rô Rô na canção "Mônica", que, aliás, se refere à jovem Mônica Granuzzo, morta em 1985 aos 14 anos, que também foi atirada de um prédio após ser espancada e tentar fugir de um estupro.

Fontes:

"Almanaque Anos 70 - Lembranças e Curiosidades de uma Década Muito Doida" (Ed. Ediouro), de Ana Maria Bahiana

"Extraordinárias - Mulheres que Revolucionaram o Brasil" (Ed. Seguinte), de Duda Porto de Souza e Aryane Cararo

"Malala, a Menina que Queria Ir Para a Escola" (Ed. Companhia das Letrinhas), de Adriana Carranca

"Memórias da Transgressão: Momentos da História da Mulher do Século XX" (Ed. Rosa dos Tempos), de Gloria Steinem

"Ousadas 1 - Mulheres que Só Fazem o que Querem" (Ed. Nemo), de Pénélope Bagieu