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Quem é a paraibana que mudou a vida dos moradores da favela da Maré, no Rio

A ativista Eliana Sousa Silva na aula inaugural das turmas de Educação de Jovens e Adultos, em 2018 - Elisângela Leite/Divulgação
A ativista Eliana Sousa Silva na aula inaugural das turmas de Educação de Jovens e Adultos, em 2018 Imagem: Elisângela Leite/Divulgação

Marcelo Testoni

Colaboração para Universa

01/02/2019 04h00

Em 1970, com apenas sete anos, a paraibana Eliana Sousa Silva escapou da seca com a família e juntos migraram para o Rio de Janeiro. Em Nova Holanda, uma das primeiras favelas do Complexo da Maré, ela construiu uma importante história social junto à comunidade local.

Ainda menina, Eliana viu como era difícil alguém de origem semelhante à sua conquistar algo na vida. Adolescente, participou de um projeto de educação e saúde desenvolvido na favela por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e virou agente comunitária. Nessa época, acompanhou de perto e entendeu quais eram as lutas, as prioridades e os direitos de quem sobrevive às margens da sociedade.

Eliana - organização contra desigualdade no Rio - Elisângela Leite/Divulgação - Elisângela Leite/Divulgação
É difícil desassociar sua história com a das 16 favelas da Maré, no Rio de Janeiro
Imagem: Elisângela Leite/Divulgação

Com a chegada dos anos 1980, foi eleita a primeira mulher presidente da associação de moradores de Nova Holanda e formou-se em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na década seguinte, fez mestrado em educação na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). "Com essa experiência, comecei o trabalho de militância, buscando, ao mesmo tempo, formular projetos, criar ações e produzir conhecimento sobre a realidade da favela. E é desse movimento que fundei algumas instituições, dentre elas, a Redes da Maré", explica.

O processo que gerou a criação da Associação Redes de Desenvolvimento da Maré (Redes da Maré), fundada por Eliana com a iniciativa de moradores e ex-moradores, começou em 1997. Porém, somente em 2007 ocorreu a sua formalização com esse nome. Atualmente, desenvolve, com o apoio de instituições públicas, privadas, não governamentais e população, perto de 35 projetos e programas sociais, em cinco eixos de trabalho: educação; arte e cultura; desenvolvimento territorial, memórias, identidades; comunicação e segurança pública.

Objetivo: lutar por quem precisa

No conjunto de 16 favelas da Maré vivem, aproximadamente, 140 mil pessoas, o que se aproxima em dimensão populacional a uma cidade brasileira de médio porte. "Nós trabalhamos, muitas vezes, em cima de demandas que o Estado deveria dar conta. No caso do Rio de Janeiro, as pessoas das favelas ainda não conquistaram efetivamente direitos muito básicos para se viver", revela Eliana, que lista entre os principais desafios a falta de segurança, de educação, de saneamento, além da discriminação aos moradores de favelas que vem de determinadas partes da população da cidade.

Apesar de tantas dificuldades, as conquistas são perceptíveis. Desde a década de 1980, Eliana, com o apoio de locais, alcançou importantes avanços para a comunidade: levou energia elétrica para a Maré, implantou um sistema de coleta de lixo, ciclovias, escolas infantis, oficializou logradouros, além de ter criado um cursinho pré-vestibular que permitiu o ingresso em universidades públicas de cerca de mais de 1.600 jovens do conjunto de favelas da Maré. A associação abriu ainda escolas de dança e de cinema, biblioteca, sala de leitura, companhia de teatro e oficinas de azulejaria e fotografia.

Favela Maré 3 - organização contra desigualdade no Rio - Douglas Lopes/Divulgação - Douglas Lopes/Divulgação
Inaugurada em 2016, a Casa das Mulheres da Maré incentiva o protagonismo e defende o direiro das mulheres da comunidade
Imagem: Douglas Lopes/Divulgação

Os cuidados com a mulher também não escaparam da atenção da ativista. Com o projeto social Maré de Sabores, criado em 2009, foi possível qualificar 500 empreendedoras em gastronomia. Já em 2016, o espaço Casa das Mulheres da Maré foi concebido para abrigar serviços de incentivo à autonomia das mulheres, combater a violência doméstica, oferecer às vítimas atendimento sócio-jurídico e psicológico e debater questões sobre gênero.

"Nesses anos todos, com os projetos que desenvolvemos, foi possível atingir um público direto de cerca de 30 mil moradores da Maré. Atualmente, temos um atendimento anual de, em média, 1.000 pessoas nos diferentes projetos", revela Eliana.

Uma mulher que quer viver o seu tempo

Embora Eliana não more mais na Maré, seu empenho social parece não ter limites. Focada na questão da segurança pública nas favelas cariocas, publicou o livro de depoimentos de moradores "Testemunhos da Maré", baseado em sua tese de doutorado, contribuindo para visão crítica a respeito da violência no Rio de Janeiro.

Favela Maré 2 - organização contra desigualdade no Rio - Douglas Lopes/Divulgação - Douglas Lopes/Divulgação
A Redes da Maré atende, anualmente, cerca de 1000 pessoas em diferentes projetos
Imagem: Douglas Lopes/Divulgação

"Atualmente, estou no Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA). Foi um caminho para mim, a universidade, que deu muito sentido à minha trajetória de ativista social. Mas não posso deixar de reconhecer o distanciamento, o hiato enorme que existe entre o conhecimento que a universidade produz e a vida cotidiana das populações das periferias e favelas. Tentei e tento trabalhar uma perspectiva de aproximar esses espaços", afirma.

Para o futuro, a ativista, que já concorreu e ganhou prêmios em diversas áreas (em 2017, ela recebeu o Prêmio Itaú Cultural 30 anos, na categoria "Inspirar"), sonha em poder tornar sua organização em uma fundação comunitária, o que juridicamente resultará em mais autonomia financeira e contribuirá para atingir mais pessoas e projetos de outras instituições locais, e ver uma mudança real na qualidade de vida dos moradores das favelas da Maré.

Favela Maré - organização contra desigualdade no Rio - Elisângela Leite/Divulgação - Elisângela Leite/Divulgação
A paraibana criou uma organização para dar às pessoas da favela uma vida mais digna
Imagem: Elisângela Leite/Divulgação

"Quando olho para trás, vejo uma menina que ainda sonha com a possibilidade de ver um mundo com menos desigualdade e violência. Vejo, também, uma mulher que foi se fazendo no tempo. Que reconhece e entende o papel que pode cumprir nas mudanças que queremos ver acontecer. Que se solidariza com todas as pessoas que sofrem, por vivermos numa sociedade que hierarquiza e valoriza a vida a partir de pressupostos que não reconhecem o direito de todos igualmente. Enfim, uma mulher que quer viver o seu tempo sem esperar pelo que precisa ser feito", diz.