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"Tratava minha filha com brutalidade por causa da depressão pós-parto"

Bianca Neves* foi uma mãe funcional nos primeiros meses de vida de sua filha, mas logo sentiu os sintomas da depressão pós-parto - iStock Images
Bianca Neves* foi uma mãe funcional nos primeiros meses de vida de sua filha, mas logo sentiu os sintomas da depressão pós-parto Imagem: iStock Images

Claudia Lima

Colaboração para Universa

08/02/2019 04h00

Bianca Neves* fez tudo como havia planejado: casada, desejou a gravidez e esperava ansiosa a chegada do bebê. Porém, logo após o nascimento, foi acometida por uma doença que atinge muitas mulheres: a depressão pós-parto. Aqui, ela conta sua história e como superou o problema:

"Desde o início, tive uma gravidez tranquila. Minha filha foi planejada e eu adorava minha barriga. Para nossa surpresa, ela chegou um mês antes: comecei a sentir muitas dores nas costas e, quando fui para o hospital, disseram que eu estava com uma infecção de urina severa que poderia comprometer o líquido amniótico. Fui internada para monitorar o bebê.

Era julho de 2009, época da primeira grande onda da gripe suína, os hospitais estavam lotados e, enquanto o quarto não vagava, me deixaram no pré-parto. A enfermeira que me recebeu decidiu fazer o exame de toque (ainda não tinha sido feito) e só me avisou: 'Sua filha vai nascer hoje, você está com 5 cm de dilatação'. Minha médica estava em férias. Passei a noite tomando remédio para dor, sem poder me mexer muito e sendo monitorada. A ideia era segurar minha filha até a manhã do dia seguinte, quando completaria 36 semanas e dar tempo de a médica substituta chegar.

Quando ela chegou, veio acompanhada por um urologista. Os dois me examinaram, analisaram os exames e nos aconselharam uma cesárea. Não era o que eu queria. Depois do parto ainda teria que passar um cateter para ajudar na drenagem da urina. A cesárea teria que ser rápida porque o perigo agora era sofrimento fetal --eu estava em trabalho de parto há, pelo menos, 14 horas.

Liguei para meus pais. Minha mãe foi fazer as malas da maternidade e meu ex-marido (hoje somos separados) passou por todas as burocracias para acompanhar a cirurgia. Eu fui chorando, sozinha, para a sala de parto. Apavorada. Chegando lá, enquanto era anestesiada, ouvia os comentários dos médicos de ambas as equipes dizendo como minha filha estava totalmente encaixada e quase com a cabeça para fora. "Preciso de uma mão menor, ela está escorregando", "Ela está muito encaixada, não consigo puxar" era o que eu ouvia durante a cirurgia.

Depois que ela nasceu, só lembro do anestesista me dizendo: "agora se entrega". Eu estava fazendo uma força enorme para não dormir. A última imagem que tenho é de uma máquina gigante de ultrassom sendo posicionada em cima de mim. Minha filha nasceu 12h11, eu fui para o quarto às 18h. Em algum momento do pré-parto eu saí do ar, perdi o controle dos meus sentimentos. Mas não sei dizer exatamente quando foi. Só sei que a partir da minha volta para o quarto eu não era mais eu.

Quando minha médica chegou, ela me disse, ainda na maternidade, que poderia, sim, ter sido parto normal. Foi outro baque e eu não lidei bem com isso.

Em casa, deprimida e com um bebê

Nos primeiros meses eu era uma mãe funcional: trocava fralda, dava o peito, banho e só.

Minha mãe ficou comigo no início e, quando ela parou de ir em casa, me entreguei. Não trocava o pijama. Cheguei a ficar mais de uma semana sem banho, não cortava as unhas. Em 40 dias, estava com seis quilos a menos do que o peso que eu tinha quando engravidei. Era pele e osso. Para as (poucas) pessoas que chegavam para visitar, eu dava minha filha e ia lavar a louça. Quanto menos contato com ela, melhor. Eu não gostava daquela situação, odiava amamentar e a dependência que ela tinha de mim. Senti muita dor para ela nascer e acho que a culpei por isso.

Não me lembro em que momento os rompantes chegaram. Ela chorava e eu berrava com ela, a colocava no berço de forma bruta. Batia a porta e deixava ela sozinha, chorando cada vez mais. Tinha vezes que eu realmente perdia o controle porque simplesmente não conseguia lidar com aquilo. Quando ela demorava para pegar o peito, eu forçava ela contra mim enquanto dizia: 'Se não sabe mamar, não vai mamar' e pulava a mamada.

Por conta da gripe suína, o pediatra me proibiu de sair de casa e era a desculpa perfeita para zerar qualquer possibilidade de convívio social. Perto do fim da licença, comecei a questionar essas atitudes e sentimentos. Apesar de continuar com o mesmo comportamento, eu conseguia, só nesse momento, perceber que tinha algo muito errado. Comecei a pesquisar na internet e caiu a ficha: estava com depressão pós-parto.

Medo de machucar a própria filha


Achei que ia conseguir sair dessa sozinha, mas não rolou e os rompantes aumentavam. Eu tinha medo de mim e de chegar ao ponto de não me controlar e machucá-la de verdade. Passaram mais dois meses e decidi voltar para terapia (tinha feito até o 6° mês de gravidez). Na primeira sessão, contei tudo em detalhes e terminei dizendo: 'Acho que estou com...' E completamos a frase juntas: depressão pós-parto.

Ela me encaminhou para um psiquiatra e, além de ser medicada, passei a ter duas sessões por semana. Na época, ela me disse: 'Parece que o pico já passou. De alguma maneira você conseguiu começar a se reerguer sozinha, mas você está em frangalhos e não tem condições de mais nada. Precisa ir devagar e de ajuda médica'. Comecei o tratamento, mas a melhora foi muito lenta.

Não lembro de quase nada do primeiro ano da minha filha: quando nasceram os dentes, se teve reação às vacinas, quando começou a dormir a noite toda, se teve cólica, quanto mamava... Eu brinco que pelo menos não sofri por ter que deixá-la no berçário aos quatro meses. Na verdade, era um alívio enorme.

Na terapia, eu tinha que trabalhar o dia do parto e o dia anterior. No início eu contava essa história como se fosse de outra pessoa, no automático, sem sentir nada. O objetivo era que eu desse vazão ao meu medo, sofrimento, dores e me liberasse para processar tudo o que tinha acontecido. Para voltar a sentir.

Foi muito difícil as pessoas entenderem o que estava passando. Eu sempre fui superforte, bem resolvida, independente e fechada. Por conta dessa imagem, nunca iria passar pela cabeça delas que eu pudesse precisar de ajuda. E eu não tinha a menor condição de pedir ajuda.

Tratamento durou anos

Algumas pessoas acham que é frescura, cansaço, que passa com o tempo. Se você tenta se abrir, alguém sempre tem uma história de algum conhecido que achava ser igual a sua. E, não, as que eu ouvia não eram iguais, nem de perto. O que aconteceu comigo não foi nada comum. Era um vazio infinito, pura falta de sentimento. Eu estava fora do corpo, observando os dias passarem. Estava em outro planeta.

O tratamento durou quase dois anos com psiquiatra e quatro com psicóloga. Finalmente consegui colocar para fora toda a dor que eu senti naqueles dias. E quando isso aconteceu foi extremamente intenso. Eu nunca senti tanta dor na minha vida. De faltar o ar, o chão. Foi terrível. Dói só de lembrar.

Depois disso, virei mãe leoa. Achava que minha filha não poderia me amar depois de tudo que fiz a ela. E, aí, eu não deixava ninguém encostar nela. Eu fazia tudo, ficava exausta, arrebentada, mas tinha que dar conta, afinal, todo mundo dá. Criei várias inimizades nessa época. Antes disso, as pessoas escolhiam a roupa, decidiam se estava frio ou não, o que ela ia comer e eu nem ligava. Deixava todo mundo ser mãe dela. Era uma boneca passando de mão em mão.

Finalmente, a alegria de ser mãe


Um dos exercícios que da terapia era comemorar e verbalizar quando minha filha aparecia. Então, quando ela chegava na sala, no meu quarto, em qualquer lugar eu gritava: "Filha, que bom que você chegou! Eu fiquei tão feliz em te ver! Desejei tanto que você viesse!".

Em 2014, decidi parar de trabalhar. Minha filha tinha cinco anos. Na minha cabeça e no meu coração, eu devia um ano da minha vida a ela. Fui mãe tempo integral: levava na escola, fazia almoço, estava 100% disponível. E eu não sou assim. Trabalho desde nova e amo. Tenho zero talento para tarefas domésticas. Quando o ano terminou, eu estava finalmente zerada e aliviada de ter quitado essa dívida. Finalmente me senti bem, livre e boa mãe.

Hoje, temos um vínculo inquebrável e sinto vontade de chorar de tanto amor só de olhá-la. Consigo ser dura, dar bronca, sem me sentir culpada e achar que ela não vai me amar por isso.

Ela tem 9 anos e parece que eu tenho 9 anos também. Porque se a maternidade por si só já deixa marcas, todo o processo pelo qual eu passei me transformou em outra pessoa. De certa maneira sou grata a tudo isso porque sou uma pessoa muito melhor".

* O nome foi trocado a pedido da entrevistada