"Se eu não tivesse fugido, acabaria como ele", diz ex de Fofão da Augusta
Resumo da notícia
- O grande amor da vida de Ricardo Corrêa da Silva, popularmente conhecido como Fofão da Augusta, conta como conheceu seu "príncipe" no auge da carreira
- Juntos, Ricardo e Vânia, que dão nome ao livro de Chico Felitti, começaram a aplicar silicone no rosto. "A pior coisa que fiz na vida", diz Vânia
Quando a reportagem "Fofão da Augusta: quem me chama assim não me conhece", publicada pelo "Buzzfeed" em 2017, contou a história de Ricardo Corrêa da Silva -- conhecido como Fofão da Augusta, uma das figuras mais controversas de São Paulo --, uma personagem importante ficou de fora: Vânia Munhoz, o grande amor da vida de Ricardo.
Vânia viveu com Ricardo durante quase toda a década de 1980, antes de passar pela transição de gênero. Juntos, começaram a injetar silicone no rosto, o que levou Ricardo a, anos depois, ser apelidado como o personagem infantil. "Foi a pior coisa que eu fiz na vida. Se eu não tivesse fugido, poderia ter acabado como ele", disse à Universa.
Sua história deu vida ao livro "Ricardo e Vânia", que acaba de ser publicado pela editora Todavia. Vânia estará em São Paulo para o lançamento, na quinta-feira (21), no Cabaret da Cecília. A obra é de autoria de Chico Felitti, mesmo jornalista que assinou a reportagem há quase dois anos.
Foi ele quem promoveu o reencontro do ex-casal, por uma chamada de vídeo, quase 30 anos após o último contato dos dois, quando Ricardo estava internado. "Tinha planos de visitá-lo da próxima vez que fosse ao Brasil. Se eu soubesse que ele não sairia do hospital, teria conversado horas", contou Vânia. Ricardo morreu dias depois, aos 60 anos, no Hospital das Clínicas de São Paulo, em decorrência de uma parada cardíaca.
Nesta entrevista, aos 55 anos, ela conta detalhes do romance "excêntrico", que terminou com uma fuga para a França, em 1989, e anos de trabalho como garota de programa -- termo que ela mesma prefere usar para definir a profissão que lhe rendeu dinheiro o suficiente para pagar luxuosas viagens internacionais e mais de dez cirurgias para remover o silicone de seu rosto, além de operações para colocar próteses mamárias e nas coxas.
Universa: Qual foi a sensação de reencontrar o Ricardo, ainda que por vídeo, quase 30 anos depois de vê-lo pela última vez?
Vânia Munhoz: Fiquei muito emocionada e, ao mesmo tempo, muito sem graça. Porque eu já não era a mesma pessoa, não era mais o Vagner. Passei por mais de dez cirurgias, coloquei silicone, me tornei uma mulher. A primeira coisa que perguntei era se ele me reconhecia. E ele respondeu: "Sim. Você é Vagner Munhoz Pereira, o amor da minha vida". Disse meu nome inteirinho. E eu disse a ele que quando fosse ao Brasil iria visitá-lo. Meu plano era tentar ajudar de alguma forma. Mas ali, naquele momento, falamos pouquíssimo. Se eu soubesse que ele não sairia do hospital, teria conversado horas. Tenho a impressão de que ele estava esperando me ver para morrer. Quando o vi com o rosto daquele jeito, fiquei impressionada. Eu o conheci no auge da carreira, aos 24 anos, quando era cabeleireiro no Shirley's [salão no Campo Belo, em São Paulo], um homem lindíssimo. Quem vê o que ele se tornou não acredita, mas ele parecia um príncipe.
Naquela época ele já aplicava silicone no rosto?
Não. Ele já tinha algumas cirurgias plásticas. Já tinha operado o nariz e a orelha. No dia em que bati à porta da casa dele de mala e cuia -- tinha acabado de fugir da casa dos meus pais, em São Bernardo do Campo, porque não aceitavam minha sexualidade -- ele estava com um curativo no nariz, pois tinha acabado de fazer mais uma operação. Éramos só amigos, começamos a namorar meses depois. Um dia cheguei em casa e vi as seringas fervendo na água quente [para esterilizar]. Fiquei chocada com aquilo. Quando não conseguia aplicar sozinho no próprio rosto, pedia que eu o ajudasse. Tudo o que ele queria era ficar mais bonito. E, com o tempo, eu também. Hoje vejo algumas fotos e sei que eu era lindíssimo, mas não entendia isso na época. Eu me achava feio, tinha complexos por falta de autoestima e achava que precisa daquilo para ficar bonito e ser amado. Mas foi a pior coisa que fiz na vida.
Por quê?
Primeiro, porque aplicar aquilo doía muito. No começo, achei legal, me senti bonitinho. Mas logo ficamos parecendo extraterrestres, uma coisa horrível. As pessoas olhavam para nós com espanto, tinham medo. Além disso, com o tempo, o silicone começa a cair, é a lei da gravidade. Lembro quando minha mãe me viu com o rosto daquele jeito pela primeira vez. Ela ficou assustadíssima, passou mal. Pensou que tivéssemos sido mordido por abelhas. Hoje não sei como aceitei aquilo. Ele me dava muito amor, mais do que eu tinha recebido a vida inteira da minha família. E eu era muito novinha, tinha acabado de fazer 18 anos, confiava muito nele. Ricardo era como um pai para mim.
No livro, você conta que fugiu para a França para manter distância de Ricardo. O que aconteceu com a relação de vocês?
Nós nos amávamos muito, mas o amor que Ricardo me dava era sufocante, doentio. A gente dormia junto, acordava junto, ia para a farra junto, trabalhava junto [no final da década de 1980, o casal se mudou para Araraquara, no interior paulista, e gerenciava um salão de beleza]. Nossa relação durou oito anos, mas passei os últimos três tentando ir embora. Eu queria encerrar o namoro numa boa e recomeçar a vida, mas toda vez que eu dizia "Ricardo, eu te amo, mas vou embora, quero outra vida", ele pirava. Fazia chantagens emocionais, dizia que ia se matar, chegou a bater a cabeça na parede e cortar os pulsos na minha frente. Eu fiz a mala e saí de casa três vezes, mas em todas as tentativas ele deu um jeito de me trazer de volta. Até que um dia consegui.
E como o Vagner de Araraquara se tornou a Vânia em Paris?
Meu irmão [Valter, também homossexual, que já vivia na França havia dez anos] viu como eu estava sofrendo e me chamou para morar com ele. Primeiro, mandou dinheiro para que eu fizesse duas cirurgias para remover o silicone. Ele achava que seria o bastante e que meu rosto voltaria ao normal. Mas não saiu quase nada e meu rosto continuou deformado. Quando cheguei a Paris, em 1989, comecei a trabalhar como drag queen em um cabaré. Nessa época, ouvi de uma amiga, com a maior naturalidade: "Por que você não vira travesti de vez? Já tem essa cara mesmo". Eu sempre quis viver como mulher. Desde criança sabia que não era homem, mas aquilo me pareceu coisa de outro mundo. Demorei para entender que na França ser transexual era muito mais aceito que no Brasil. Então comecei a tomar hormônios, fazer tratamento estético para não nascer mais barba... Comecei a trabalhar como garota de programa e ganhar muito dinheiro [no livro, ela conta que chegou a faturar 30 mil euros por mês -- mais de 125 mil reais na cotação atual]. Fiz viagens maravilhosas e pude pagar minhas cirurgias para remover o silicone do rosto. Se não tivesse fugido, poderia ter acabado como o Ricardo.
Hoje, aos 55 anos, você ainda trabalha como garota de programa. Pretende se aposentar?
Estou parando aos poucos. Além desse trabalho, também ganho algum dinheiro como cabeleireira. Mas a vida anda muito difícil. Eu envelheci, passo semanas sem fazer programa, não dá para viver. Tenho artrose [doença crônica e degenerativa que causa dor nas articulações], sinto muita dor. Me inscrevi num programa do governo para poder parar de trabalhar. Assim que me derem um apartamento baratinho, eu paro de vez. Quero viver como uma mulher comum. Estou fazendo tratamento para passar pela cirurgia de redesignação sexual no hospital público, mas ainda deve demorar uns dois ou três anos. Se tivesse dinheiro, faria amanhã mesmo na Tailândia. Tenho amigas que fizeram lá e o resultado ficou perfeito.
Por que você não fez antes, quando era mais jovem e tinha dinheiro?
Porque os clientes gostam do lado masculino da gente. Conheço outras garotas que passaram pela cirurgia e perderam muita clientela. Por mais que eu quisesse, prometi a mim mesma que ia esperar até os 40. Mas não tenho dinheiro. Se ganhar uma bolada, é a primeira coisa que vou fazer.
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