Pai de Malala: Ela vai a festas, dá conselhos e falamos de tudo, menos sexo
Em 2012, aos 14 anos, a paquistanesa Malala Youszafai foi baleada na cabeça ao voltar de um dia de aula, em um ataque organizado pelo Talibã, que havia baixado uma ordem proibindo garotas de irem à escola. Sua história correu o mundo.
"Me perguntei se era responsável, se poderia tê-la protegido desse atentado", conta à Universa o pai de Malala, Ziauddin Yousafzai, autor de "Livre Para Voar", (Companhia das Letras), lançado neste mês. "Falei disso com minha mulher, e ela respondeu que os únicos responsáveis eram as pessoas que tinham atirado em nossa filha. Foi a última vez que tive esse tipo de pensamento."
No livro, Yousafzai fala sobre como foi crescer em uma casa de mulheres invisíveis -- a mãe e as cinco irmãs existiam apenas para servir aos homens, e ainda é assim que funciona em vários lares paquistaneses.
Nesta entrevista, ele explica por que, apesar dessa cultura, se transformou em um ativista pelos direitos das mulheres e decidiu criar a filha, hoje com 21 anos, longe dessas amarras. Yousafzai fala com ternura sobre o esforço que deu certo: "Quando visito Malala e a vejo com os amigos na Universidade de Oxford, vivendo não como uma celebridade, mas como uma garota normal, me sinto muito orgulhoso", diz o pai da ganhadora do Nobel da Paz de 2014.
Atualmente trabalhando como funcionário do departamento de educação da embaixada do Paquistão na Inglaterra, ele conversou com Universa por Skype, da cidade de Birminghan, onde vive com a mulher, Toor Pekai.
Sabemos sobre a história de Malala. E sobre sua mulher, o que pode nos contar?
Ela se chama Toor Pekai e a conheci quando eu tinha 21 anos. Não sabemos que idade ela tem, porque, por ser mulher, nem sequer foi registrada. Sou complexado, não sou bonito, e ela é. Quando começamos a namorar, eu pensava: "Essa mulher linda acredita em mim". Foi a pessoa que restaurou minha autoconfiança. Aqui em Birmingham, na Inglaterra, onde moramos, ela faz aulas de inglês e cuida da casa. Tem um trabalho de filantropia ajudando mulheres no Paquistão. Fora isso, ela gosta muito de fazer compras. Passa horas no shopping comprando roupas, sapatos e bolsas.
O senhor conta no livro que pede muitos conselhos para sua filha. Qual foi o último que ela te deu?
Disse que eu não posso tomar decisões baseado em suposições. Ela repete isso sempre: "Não faça suposições, pesquise, se informe". A última vez que me falou isso foi por mensagens de texto, há poucos dias, quando conversamos sobre as contas da casa. E ela fala brava.
E sobre assuntos como drogas e sexo, vocês conversam?
Sobre isso não falamos muito. Malala é muito forte, tem seus valores, acredito que dos riscos envolvendo drogas e sexo eu não precise falar, ela tem disciplina. Eu é que deveria receber conselhos dela sobre a nova cultura dos jovens.
Em "Livre para Voar", o senhor conta que foi criado de acordo com a cultura paquistanesa: mulheres têm que servir aos homens e não devem estudar. O que o fez agir diferente em relação à sua filha e à sua mulher?
A educação que tive. Meu pai não mandou minhas irmãs para a escola, é verdade, mas exigia que os homens estudassem. Ele era um religioso, trabalhava na mesquita, mas não acreditava na história de "tal pai, tal filho". Queria que eu fosse de uma geração nova, com uma educação moderna, e que seguisse meu próprio caminho. E eu comecei a perceber que não era justo que os homens controlassem as mulheres. Quando tinha 19 anos, uma das minhas primas foi forçada a se casar e ela não estava feliz. Eu sabia que aquilo estava errado. Disse a mim mesmo que não ia fazer o mesmo na minha casa.
O senhor afirma que foi muito criticado por dar liberdade às mulheres da sua família. Dentro da sua própria família também?
Sim; me diziam que Malala não deveria ter tanta liberdade. Por volta dos 12, 13 anos, ela começou a fazer discursos em seminários e conferências e a aparecer na televisão. Um sobrinho me disse que estava desconfortável. Reclamou para minha mulher que os amigos dele estavam falando mal de Malala e disse que ela, por ser uma garota, deveria ficar dentro de casa. Hoje esse sobrinho é um grande apoiador dela.
Meninas e mulheres do Paquistão o procuram para pedir ajuda?
Sim, muito. Há menos de um mês eu e minha mulher conseguimos salvar uma garota de 19 anos. Uma pessoa da minha comunidade no Paquistão ligou e contou que a jovem foi visitar o namorado, coisa de adolescente, e que a família queria matá-la envenenada porque eles não eram noivos. Liguei para uma autoridade do país, que faz parte de um departamento do governo que lida com casos de violência contra a mulher. Em menos de uma hora, ela ligou para a polícia, que foi até a casa da família e disse que, se acontecesse algo com a menina, todos seriam punidos. Agora ela está morando com o namorado.
Malala sofreu o ataque em 2012 porque se posicionava publicamente contra as ordens do Talibã, que restringia o acesso à educação das meninas paquistanesas. O senhor, em algum momento, se questionou sobre tê-la criado de maneira mais livre?
Sim. A primeira coisa que fiz foi me perguntar qual era meu papel no que aconteceu com ela. Quando Malala foi atacada, eu estava prestes a dar uma palestra. Um amigo foi que me deu a notícia, porque meu celular estava desligado. Minha voz sumiu, eu não via nada, não ouvia nada, como um computador que para de funcionar. Foi muito traumático. Me perguntava se poderia ter agido de maneira diferente, se poderia ter protegido minha filha. Disse isso para minha mulher, que me respondeu que os únicos responsáveis foram as pessoas que cometeram o atentado. Foi a última vez que tive esse tipo de pensamento. O Talibã tirou direitos das crianças, bombardeou escolas, e ninguém falava nada. Malala foi a única menina que se levantou contra isso. Ela fez o que deveria ter sido feito.
Como é a vida de Malala hoje?
Ela mora em uma casa para estudantes e costuma passar o dia todo na faculdade (Malala faz o curso de Filosofia, Política e Economia na Universidade de Oxford). Fico muito feliz quando nos encontramos lá e almoçamos juntos. Ela é cheia de amigos, meninos e meninas. Vai a conferências, seminários e às festas com os colegas. Quando a vejo nesse ambiente, não como uma celebridade, mas como uma garota normal, me sinto muito orgulhoso. Conversamos muito por telefone e por mensagens. Também vou visitá-la em Oxford (a cerca de uma hora de carro de Birmingham) com frequência.
Como é o esquema de segurança da sua família na Inglaterra?
Não precisamos de segurança aqui. E eu me sinto muito seguro no Reino Unido. Nos mudamos para cá há cinco anos. Até pensamos em voltar a viver no Paquistão, mas precisa ter uma grande mudança política, um compromisso para acabar com o terrorismo. Como pai, não posso arriscar a vida da minha filha (a família tem mais dois meninos). A última vez que fomos para lá, em março de 2018, foi uma decisão da Malala. Ela precisou andar com seguranças, mas não posso falar sobre isso, sob o risco de não protegê-la.
Na sua opinião, qual é uma das principais características positivas das meninas paquistanesas?
Eu diria que é a resiliência. As garotas do meu país conseguem enfrentar as dificuldades que aparecem em seu caminho. Há opressão, mas coisas estão mudando muito. Quando eu estudava, não havia uma menina sequer na minha sala. Agora elas vão para a escola. Há mulheres na política e no parlamento.
Como os pais são importantes na criação das filhas?
O pai é a primeira figura masculina da vida de uma filha. Se ele acreditar em direitos iguais, já começa a mudança. A maneira como tratei minha mulher, sem seguir a ideia de que ela tinha que me servir, mas de igual para igual, foi o que pude fazer. E acho que consegui mudar o curso da vida da minha filha por causa disso.
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