Por que o abuso emocional pode ser considerado crime de lesão corporal
Há uma parcela de vítimas de violência doméstica que, apesar de não ter sofrido agressão física, tem sequelas causadas por abusos emocionais. É o caso de mulheres que, em seus relacionamentos, foram continuamente atacadas com xingamentos, humilhações, ofensas, ameaças, chantagens e perseguições -- atos enquadrados pela Lei Maria da Penha como violência psicológica --, e desencadeiam stress pós-traumático, depressão e crises de pânico.
Uma discussão recente entre juristas levanta a possibilidade de, nesses casos, o agressor também ser processado por lesão corporal, crime que tem pena de até oito anos de prisão.
Mas por que violência psicológica pode ser considerada (também) lesão corporal?
Pode parecer estranho falar em agressão ao corpo e não ser remetido imediatamente a algum tipo de violência física. Mas, na letra da lei, faz todo sentido. Pela legislação brasileira, lesão corporal é o ato de "ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem". E, aos olhos de alguns juristas o conceito de saúde abarca também sua porção mental --teoria defendida igualmente pela OMS (Organização Mundial da Saúde).
O entendimento de que violência psicológica pode ser crime de lesão corporal existe, pelo menos, desde 2017, quando a juíza Ana Luisa Schmidt Ramos, hoje na vara de plantão criminal de Florianópolis, lançou o livro "Dano Psíquico Como Crime de Lesão Corporal na Violência Doméstica".
Ana Luisa defende a tese de que mulheres vítimas de violência doméstica, mesmo as que não sofrem agressão física, podem apresentar um quadro de stress pós-traumático, distúrbio que consta da Classificação Internacional das Doenças da OMS.
Entre os sintomas de stress pós-traumático estão isolamento social, quando a pessoa foge de situações e de lugares por medo de reviver traumas; flashbacks e pesadelos e crises com sintomas que vão de taquicardia a tontura.
"Eu via as mulheres nas audiências da Lei Maria da Penha com sinais evidentes de depressão, tristes, abaladas, sem conseguir retomar a vida social e o trabalho, e me questionei como aquela situação poderia ser denunciada", diz a juíza. "É uma interpretação nova, tanto que não encontrei nenhuma condenação judicial, apenas processos em andamento, com esse enquadramento."
A violência psicológica pode gerar danos na psique a ponto de se estender por tempo indeterminado, necessitar de tratamento psiquiátrico e impedir a mulher de retomar seu dia a dia. Por esses motivos, como na lei há a divisão entre lesão coporal leve e grave, a juíza considera que esses casos se enquadram no segundo item.
Segundo a promotora Silvia Chakian, coordenadora do Núcleo de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério Público de São Paulo, os casos no MP envolvem vítimas de violência psicológica com depressão, síndrome do pânico, tentativa de suicídio e transtorno de sexualidade -- a ponto de não conseguir se relacionar com outros parceiros --, de sono, de ansiedade e alimentares. "Nosso esforço é provar que foram os abusos do marido que provocaram esses danos", diz a promotora.
A promotora diz que já houve uma condenação, mas que o processo tramita sob segredo de Justiça e, portanto, não é possível divulgá-lo.
Como provar que o abuso emocional causou uma doença?
Da mesma maneira que é necessário um laudo do IML (Instituto Médico Legal) provando a violência física, o laudo psicológico, feito por um psicólogo ou psiquiatra, vai comprovar o dano psíquico. Mas esse dano não é tão fácil de identificar quanto uma escoriação ou um hematoma.
É preciso que o perito faça uma avaliação mais demorada e minuciosa, necessitando de mais de um encontro com a vítima. "Ter depressão, por exemplo, não basta; o laudo precisa dizer que o distúrbio é decorrente da violência doméstica", afirma Silvia.
Avaliação psicológica tem que começar na delegacia
A juíza Ana Luisa Schmidt Ramos sugere que a avaliação psicológica se torne praxe no momento em que a mulher registrar o boletim de ocorrência. "Hoje em dia só se apura a lesão física. Seria importante que fosse criado o protocolo também para a lesão emocional", diz.
"98% das mulheres que sofrem violência psicológica têm manifestações físicas, como dor de cabeça, dores musculares e diarreia. Ainda não tenho nenhum caso, mas fico feliz que essa discussão está aparecendo porque, no geral, só se entende violência como física, e na verdade, as agressões são múltiplas", afirma a advogada Gabriela de Souza, do escritório Advocacia para Mulheres, de Porto Alegre.
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