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Racismo em xeque: Hollywood humaniza relações raciais e muda cara do Oscar

Pantera Negra - Divulgação/Marvel Studios
Pantera Negra Imagem: Divulgação/Marvel Studios

Geiza Martins

Colaboração para Universa

24/02/2019 04h00

O Oscar não é mais o mesmo de três anos atrás. Pouco tempo se passou desde o estouro da campanha #OscarsSoWhite (OscarMuitoBranco), que criticava a predominância de brancos na Academia em 2016. Mas já no ano seguinte, em 2017, a premiação abriu espaço para artistas negros. Inclusive, a edição bateu um recorde: todas as seis principais categorias tinham um negro na disputa. Em 2018, foi a vez de Jordan Peele levar o prêmio de melhor roteiro pelo aclamado "Corra".

Neste ano, temos "Pantera Negra" e "Infiltrado na Klan" como grandes representantes da diversidade, além de Spike Lee, que pode ser o primeiro cineasta negro a levar o Oscar de melhor diretor. Sobre a indicação, o cineasta falou: "Bem, sejamos honestos. Isso não teria acontecido se não fosse pela hashtag #OscarsSoWhite. Aquela campanha fez a Academia entender que eles precisavam diversificar os membros".

Questões raciais no foco

Todavia, seria injusto dizer que a conquista das produções com temáticas antirracistas é resultado apenas da mudança de atitude da Academia de Artes e Ciência Cinematográficas de Hollywood. A verdade é que Hollywood também virou outra. Falando em representatividade, há um crescente número de produções focadas não somente no racismo em si, mas também nas relações raciais -- as indicações dos últimos três anos acumulam 10 filmes com essas questões. E é a qualidade dessas narrativas que conquista crítica e público e lota cinemas.

"Esses filmes têm um valor não só por pautarem a questão das tensões das relações raciais nos Estados Unidos, mas como obras cinematográficas. São escolas de cinema. Estão ditando linguagens, têm propostas estéticas muito elaboradas", opina a cineasta e ativista Aline Lourena. Mestre em Comunicação e Cultura, graduada em Audiovisual pela UFRJ, ressalta que esse boom cinematográfico não tem como foco o racismo em si, mas a humanização dos protagonistas negros. Em outras palavras, o que está em foco não é a violência e o genocídio, mas o protagonismo do indivíduo.

"Não estamos acostumados a ver histórias que colocam os protagonistas negros em posições humanizadas, que falem sobre seus afetos, seus sonhos, suas ambições, sobre a experiência humana no mundo". Para Aline, tais produções inauguram uma nova era no cinema. E a temática aparece como uma reação do mercado norte-americano a um debate social. "A indústria cinematográfica entendeu as discussões e o lugar de consumo dessa sociedade negra que quer se ver nas telas. É uma demanda por representação, imagens e narrativas que se aproximem do público".

Pedimos para a cineasta destacar alguns filmes que fazem parte desta nova era do cinema.

"Pantera Negra" (2018)

Indicações: Melhor Filme, Figurino, Canção Original, Trilha Sonora, Direção de Arte, Mixagem e Edição de Som

Um dos favoritos ao Oscar de melhor filme, a história do herói da Marvel quebrou recordes. Entrou para o hall de maiores bilheterias do cinema de todos os tempos: US$ 1,34 bilhão, sendo o nono mais assistido. Além disso, foi a maior estreia de um diretor negro e também a maior estreia de um filme estrelado majoritariamente por atores e atrizes desta etnia. Aline acredita que a força do longa-metragem está em criar um novo imaginário. Wakanda, por exemplo, é uma sociedade 100% africana, que domina tecnologias muito mais avançadas do que o restante dos países. Eles formam o povo mais poderoso do planeta. "É uma sociedade em que outros valores são possíveis, como respeito e conexão à natureza, e disputas de territórios, trazendo essa linguagem popular dos quadrinhos para as telas"

Infiltrado na Klan (2018)

Indicações: Melhor Diretor, Filme, Roteiro Adaptado, Trilha Sonora, Edição e Ator Coadjuvante (Adam Driver)

O ator Topher Grace como David Duke em cena do filme "Infiltrado na Klan", de Spike Lee - Reprodução - Reprodução
O ator Topher Grace como David Duke em cena do filme "Infiltrado na Klan", de Spike Lee
Imagem: Reprodução

Adaptada do livro do ex-policial Ron Stallworth, a história relata como ele conseguiu se infiltrar na Ku Klux Klan nos anos 1970. O filmaço de Spike Lee pauta não só o funcionamento do sistema racista, como também mostra como lutar contra ele mesmo dentro de instituições como a polícia americana. O próprio diretor falou sobre a importância histórica da produção: "Daqui a muitos anos, ao procurar por uma obra de arte que cristalizou essa época louca em que vivemos, os historiadores colocarão 'Infiltrado na Klan' no topo da lista".

Para Aline, o longa é uma "oportunidade para as pessoas olharem e simpatizarem pela causa antirracista". Isso porque, ao investigar e descobrir o universo da Klan (e também do ativismo negro), o personagem se apaixona, erra, sente medo, duvida, enfim, tem sentimentos de típicos de um herói-humano. "O Spike Lee consegue fazer com que o público sinta empatia pelo personagem para a luta antirracista não seja apenas do negro, mas da sociedade como um todo", comenta.

"Moonlight: Sob a Luz do Luar" (2016)

Prêmios: Oscar 2017 de melhor filme, roteiro adaptado, ator coadjuvante (Mahershala Ali)

Cena de "Moonlight: Sob a Luz do Luar" (2016) - Reprodução - Reprodução
Cena de "Moonlight: Sob a Luz do Luar" (2016)
Imagem: Reprodução

Muito além da temática racista, o filme é um perfeito exemplo da humanização do protagonista negro citada pela cineasta Aline Lourena. A jornada de Chiron é captada como um poético estudo de personagem ao mostrar três momentos de sua vida e dramas que ocupam cada fase, como o bullying, a descoberta da sexualidade e a vivência em uma comunidade pobre de Miami. O filme encanta por sua linguagem, roteiro e, principalmente, pela bela fotografia. Aline caracteriza o longa como "uma delicadeza cinematográfica". "Moonlight é um filme muito sensível. As questões dos afetos e da sexualidade estão presentes na narrativa".

"Estrelas Além do Tempo" (2016)

Indicações:  Oscar 2017 de melhor filme, atriz coadjuvante (Octavia Spencer), roteiro adaptado

Ao retratar a histórias de três cientistas negras responsáveis por contribuições cruciais na corrida espacial americana, o longa tem o papel da representatividade da mulher negra e de fazer justiça histórica. "As pessoas não conhecem e nem sabem o que é sentir isso. Porque a história contada é sempre uma só. E a invisibilidade [negra] é muito grande", comenta Aline. Trata-se de uma adaptação da obra de Margot Lee Shetterl, "Hidden Figures - The American Dream and the Untold Story of the Black Women Mathematicians Who Helped Win the Space Race" (em tradução livre, "Figuras escondidas - O sonho americano e a história não contada das mulheres negras Matemáticas que ajudaram a ganhar a corrida espacial"). Considerado um sucesso, a obra rendeu US$ 235 milhões de dólares na bilheteria mundial.

"Eu Não Sou Seu Negro" (2016)

Indicação: Oscar 2017 melhor documentário

A ficção não foi o único gênero cinematográfico a trazer um novo olhar narrativo. O documentário produzido por Raoul Peck examina as questões raciais contemporâneas usando como base "Remember This House ", o livro inacabado do brilhanteo escritor e ensaísta James Baldwin sobre o racismo nos EUA. "Para mim, o ponto forte é trazer a figura do James Baldwin para o centro, importante na discussão das relações raciais nos Estados Unidos, um intelectual, um artista pouco conhecido", comenta Aline.

Nem só de séries é feita a mudança

Estrelas Além do Tempo - Reprodução/Northern Star - Reprodução/Northern Star
Estrelas Além do Tempo (2016)
Imagem: Reprodução/Northern Star
"Cara Gente Branca" (desde 2017): "Dear White People" não deveria estar nesta lista por ser uma série da Netflix. Mas, precisa fazer parte dela por ser uma produção audiovisual que debate relações raciais e humaniza personagens que vivem questões tão contemporâneas quanto as que debatemos na vida real hoje em dia. "A série traz esse universo do negro dentro de uma universidade, que é algo que ainda estamos debatendo no Brasil. E não só sobre o racismo, são eles descobrindo seu papel no mundo, entendendo os desafios pessoais individuais como seres humanos e como operar isso na sociedade", finaliza a cineasta.