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Apesar dos avanços na legislação, violência contra a mulher segue alarmante

Violência contra mulher é uma realidade das brasileiras, e a tendência é que esse quadro piore - Getty Image
Violência contra mulher é uma realidade das brasileiras, e a tendência é que esse quadro piore Imagem: Getty Image

Maria Carolina Trevisan

Colaboração para Universa

26/02/2019 00h00

A cada hora, 1.830 mulheres brasileiras sofrem violência, entre agressões físicas e psicológicas. É uma estatística que se repete todos os anos, cada vez com mais intensidade, especialmente para mulheres negras. Como mostra a pesquisa "Violencia Contra as Mulheres", do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a tendência é piorar: faltam política públicas específicas voltadas para enfrentar esse tipo de violência; falta preparo das instituições que recebem a denúncia; faltam ações que visem a mudança cultural e de comportamento por trás do escudo que faz um homem se sentir seguro para golpear, assediar ou violentar uma mulher.

Mas não se trata "apenas" da impunidade. O Brasil tem um importante conjunto de leis voltado para essa questão. Aprovamos a Lei Maria da Penha em 2006, ampliamos a lei de estupro em 2009, implementamos a lei do Feminicídio em 2015 e a importunação sexual em 2018 (quando a agressão acontece em locais públicos). Mas aprovar leis não é suficiente para mitigar a violência.

A maior parte das mulheres, como mostra a pesquisa, simplesmente não denuncia o agressor. Há diversos motivos para isso: a polícia não quis fazer o registro, ela teve medo de represálias, vergonha de admitir ter passado por determina situação, descrença na instituição policial e dificuldade em provar à autoridade que houve, sim, violência --como se a palavra da mulher não valesse muito. "É superimportante a gente estimular que as pessoas denunciem, mas o outro lado precisa estar preparado para receber essa denúncia", alerta Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e autora da pesquisa sobre vitimização de mulheres. Se não prepararmos as delegacias e os policiais para receberem essas mulheres, estaremos gerando um ciclo de violência sem fim, que começa quando o homem agride a mulher e se aprofunda quando o Estado negligencia sua proteção.

Uma medida eficaz, e que poderia ter resultados imediatos, é criar um protocolo comum para atendimento às vítimas de violência de gênero, de modo que qualquer autoridade policial saiba como tratar uma mulher nessas condições. "A lei é maravilhosa, mas a gente falha muito nas respostas públicas", afirma Samira. 

Além de preparar os órgãos policiais, é preciso atuar na compreensão cultural sobre o direito das mulheres. Para tanto, é necessário atuar nas escolas, falar sobre gênero e violência, conversar com os jovens. O cenário atual não é aceitável. 

Políticas de retrocesso

Até agora, o governo de Jair Bolsonaro não apresentou medidas que tenham o objetivo específico de diminuir a violência contra a mulher. Pelo contrário. Primeiro, o presidente Bolsonaro flexibilizou a posse de armas em um decreto, garantindo que mais pessoas tenham acesso a armas de fogo. Semanas depois, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, propôs ampliar o conceito de legítima defesa, incorporando em seu pacote anticrime uma medida que pode expor ainda mais mulheres à violência letal: agregou a esse artigo o conceito subjetivo de que se pode matar ao agir sob "escusável medo, surpresa ou violenta emoção", em caso de alegada legítima defesa. 

Especialistas veem esse trecho com preocupação. "Ele abre um precedente extremamente perigoso para as mulheres", afirma Samira. Seria a volta da "defesa da honra", justificativa usada para assassinar mulheres quando homens eram tomados, por exemplo, por ciúme ou raiva. De acordo com o pacote de Moro, quem cometer esse crime pode ser perdoado por um juiz ou ter a pena reduzida pela metade. A medida aumenta a vulnerabilidade de mulheres. Seriam regidos por essa legislação qualquer cidadão, não apenas os policiais.

No final de 2018, o ex-presidente Michel Temer (MDB) criou o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), que unifica as polícias e indica as diretrizes que devem ser compartilhadas por todo o país, mesmo que a segurança pública seja competência dos estados e municípios. "As unidades da Federação assinarão contratos de gestão com a União, que obrigará o cumprimento das metas como a redução dos índices de homicídio e a melhoria na formação de policiais', diz a página do Palácio do Planalto destinada ao sistema. 

O SUSP criou um plano decenal de segurança pública que foi aprovado em novembro passado. Nele, há um eixo sobre violência contra a mulher, que trata desde protocolos de atendimento a mulher em situação de violência até questões relacionadas à educação e discussões de igualdade de gênero dentro das escolas. "Até agora a atual gestão não falou nada sobre esse plano, que está em vigor e deveria estabelecer as métricas e as balizas de ação do atual governo", diz Samira. 

Nesse sentido, preocupa o posicionamento frequente da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, contra a discussão sobre igualdade de gênero nas escolas, que ela classifica como "ideologia". A ministra, que foi abusada por um pastor na infância, acha que conversar sobre gênero seria um meio de fragilizar a família. Damares falou à ONU nesta segunda (25). Disse que quer proteger as mulheres. Mas sequer mencionou a execução de Marielle Franco, que vai completar um ano sem responsabilização. 

Até agora, o governo federal não desenhou políticas para mulheres negras, que são as mais vulneráveis à violência, entre outras áreas. Enquanto os índices de violência letal contra mulheres brancas vem diminuindo, contra mulheres negras está aumentando. "A tendência é o crescimento da morte violenta de mulheres negras. Com mais armas, haverá mais violência contra elas. Estarão mais expostas", afirma a pesquisadora negra Jackeline Romio, doutora em Demografia pela Unicamp. "Considerei um retrocesso imenso o ministro Moro mencionar a 'violenta emoção'. O aspecto subjetivo leva a pessoa a se sentir justificada a cometer assassinato. É vergonhoso, dado todo o avanço que já vivemos."    

Não podemos nos conformar com um país que não enfrente a situação de violência contra a mulher, que aceite retrocessos mesmo sabendo que custará a vida de milhares de brasileiras. Não é mais possível que um homem ejacule na calça de uma mulher em pleno transporte público e ela tenha que escutar do agente público: "Tem certeza que não é água?"