Drag Me As a Queen: "Falamos como gostaríamos que falassem com a gente"
Imagine-se em um momento de lazer, assistindo vídeos do YouTube no celular. Surge na tela uma senhora distinta, de meia idade, com estilo retrô e conversando com espectador sobre consciência de classe. Ou sobre padrão de beleza, ou monogamia.
Essa é a drag queen Rita Von Hunty que, entre outras muitas atividades, é youtuber. Ela começou em 2015, apresentando vídeos de receitas veganas. Na descrição do seu canal, o Tempero Drag, uma pequena biografia: "Além de drag queen, também sou esposa, mãe de dezesseis crianças, professora de literatura russa, síndica do prédio, já no quarto mandato, e do lar" - "porque para a mulher nada é impossível", esclarece o artista que dá vida à Rita, o ator e professor Guilherme Terreri, de 28 anos.
Desgostoso com o modo como a mulher tem sido tratada nos dias atuais, Terreri compôs uma personagem de senso crítico contundente e humor ácido -- como o dele: Rita vai direto na jugular do patriarcado nas mensagens que passa. De maneira didática e irônica, como lhe é peculiar. Formado em artes cênicas pela Unirio, a Federal do Rio de Janeiro, e em Letras pela USP, a Universidade de São Paulo, Guilherme Terreri é estudante de Filosofia e resolveu mergulhar nessa arte, depois de se dar conta da amplitude do trabalho: "Uma drag é o maquiador, figurinista, ator, diretor, coreógrafo e bailarino. Dá muita vontade de exercer tudo, de não se limitar."
Ele conta que a Rita dá voz a assuntos que fluem em suas rodas de conversa. Foi assim que surgiu o "Rita em cinco Minutos", onde trabalha reflexões mais existenciais. "São debates que tentamos editar em 5 minutos para que não fique acadêmico ou raso demais e que incite as pessoas a discutir e correr atrás de uma referência, um estudo -- ou a compartilhar e levar a discussão adiante." Um dos reflexos desse projeto foi uma série de cursos que a Rita passou a ministrar: o Curso Revolucionário de Rita von Hunty, onde ela aborda de maneira mais profunda alguns desses temas.
Drag me as a Queen
Além de todas essas atividades, Rita von Hunty é uma das três apresentadoras do Drag Me As a Queen, programa exibido pelo canal E! , o primeiro do formato em toda a América Latina -- em sua primeira temporada já foi um dos cinco indicados na categoria "melhor programa do troféu APCA: Melhores da Televisão de 2018", um dos mais respeitados pela crítica de TV brasileira. A segunda temporada estreia dia segunda (18), às 22h. "Atualmente, o Drag Me As a Queen é a coisa mais importante, mais especial que eu faço", crava Rita.
O reality é apresentado por três drags, e a equipe por trás das câmeras é composta por 75% de mulheres. A intenção do programa é ser um facilitador do encontro da participante com sua diva interior. E o caminho passa por uma apresentação de drag com pacote completo: cabelo, maquiagem e performance de dublagem.
Outra apresentadora do DMAAQ, Ícaro Kasdoshi é vivida pelo jornalista Tiago Liberato, de 38 anos. O ponto forte da sua drag é a sensibilidade -- aviso já dado na abertura do programa --, ou seja, sua inteligência mais marcante é a emocional. É comum vê-la chorando com as participantes que se emocionam durante alguma gravação: "não é uma emoção que eu não consiga identificar. Quando ela fala que teve problemas com a família ou que não é valorizada no trabalho, eu já passei por aquilo em algum momento da minha vida."
Ícaro diz que tenta tocar na ferida dessas mulheres de maneira delicada e doce, "porque a gente pode falar sobre qualquer coisa com amor". "É isso que a gente faz no programa: falar com ela como a gente gostaria que o mundo falasse com a gente."
A missão do DMAAQ, na sua visão, é proporcionar o exercício da empatia. "Se a pessoa ouvir a história e parar por um minuto e pensar: 'como eu reagiria se eu tivesse sentido a mesma coisa que ela?', Pronto: o que a gente queria com o programa era fazer quem está recebendo a mensagem refletir."
Penélopy Jean completa a trinca de musas exuberantes da apresentação. "Nós drags, além de sermos belíssimas e estarmos sempre em cima do salto, não somos só essa montação -- temos muito a falar e isso ficou guardado por muito tempo." Ela acredita que programas que tem a drag como figura principal ajudam a amenizar o estereótipo e a mostrar que elas também têm conteúdo. "Não vamos parar nunca mais."
O criador de Penelopy é Renato Ricci, 32 anos, formado em Design Gráfico pela Belas Artes e Maquiagem pelo Senac. "Nossa arte é linda e estamos aqui para pertencer à sociedade, ao mundo -- afinal, o que nós seríamos sem as mulheres? Elas nos ensinam sobre amor incondicional e senso de coletivo", lembra. "Nós estamos aqui para isso: para enaltecer e celebrar o feminino."
Drag hype e desconstruidona
De acordo com o dicionário, drag queen é um homem que se veste de mulher, usando roupas exóticas e maquiagem carregada, como diversão ou a trabalho. Historicamente, são personagens hiperssexualizadas e com humor escrachado.
Nem todas.
"Quando me falaram que drag queen tinha que raspar ou esconder a sobrancelha, eu resolvi que a minha não [seria assim]. Me falaram que a maquiagem tinha de ser exagerada, eu decidi que a minha não. Eu to indo por esse caminho: de não fazer o que me falaram", diz Terreri, que criou a Rita. Ele considera a arte drag uma expressão de coragem e rebeldia.
Ìcaro Kadoshi é outra drag cheia de opinião. "Eu não tenho nenhum compromisso com o feminino ou com o masculino. Posso estar hoje mais feminino, amanhã mais masculino. Posso ser uma personagem de filme ou estar montado (vestido) de palito de fósforo -- a arte vem antes do gênero da personagem", arrematou.
Ícaro, a drag de Liberato, não usa nem peruca, como a maioria faz. "Se a drag queen é uma arte e eu uso o meu corpo como uma tela em branco, posso me pintar como eu quiser e as pessoas vão entender como elas quiserem", conjectura Liberato que conclui que a arte é subjetiva para o artista e para quem a recebe. Tanto que a personagem se chama Ícaro: tanto pela sua paixão pela Grécia, quanto porque ele nunca quis um nome feminino para sua drag. Kadosh significa 'santo' , em hebraico. "Eu sou o oposto do que as pessoas imaginam."
Ele reforça a fala de que toda drag é uma homenagem ao feminino, mesmo que não se pareça uma mulher. É uma proposta de reflexão sobre mulher na época contemporânea. "Toda vez que eu coloco um pincel no rosto, é um ato político. Quando eu saio de casa montado, correndo riscos de violência, e toda vez que eu subo num palco para transmitir uma mensagem por uma música, é um ato político." Na medida em que as pessoas não identificam o sexo da personagem de maneira imediata, Liberato acredita que pode trazer uma reflexão sobre diversidade de gêneros para o público.
Aos 38 anos, o jornalista se apresenta como drag há 19 anos. Em um tempo que a arte drag era - ainda mais - marginalizada, namorar ou andar com quem exercia esse ofício era considerado "queimação de filme" -- e ele acredita que ainda haja resquícios desse pensamento. "Quem olha uma drag, acha que é superficial, que só sabe falar de fofoca ou de maquiagem. Esquecem que nós podemos falar sobre política, economia, ou religião, de emoção." Atualmente ela faz shows em casas noturnas, é mestre de cerimônias do miss Brasil Gay e celebra casamentos.
Diante das situações que viveu enquanto montada -- algumas boas, mas a maioria ruim --, Ícaro Kadoshi diz que que é um "apaixonado pelo ser humano". "Quando estou montada, consigo ver o que isso causa nas pessoas, e me causa reflexos de como elas reagem. Isso me fez ter mais empatia e entender a limitação das pessoas."
Penélopy Jean acha que a desconstrução ainda está no começo. "Atingimos um público seleto. Muitos ainda estão resistindo, com preconceito, por não saber muito bem do que se trata a arte drag", lamenta. "Quando mais gente conhecer a arte drag, vão ter menos preconceito e vão passar a consumi-la."
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