Inspetora penitenciária trans: "Chefe disse que não queria ouvir gracinha"
Bruna Dellacqua, 36, é inspetora penitenciária, mora em Serra, no Espírito Santo. Ela já inspecionou corredores, muralhas e organizou a rotina de presídios masculinos na região da capital, Vitória, e em Linhares, ao norte do estado. Ah! Ela é uma mulher trans.
Em 2014, ela começou a transição de gênero. Chamou o chefe para anunciar que decidira viver como sempre quis. No lugar do eventual e habitual preconceito, encontrou acolhimento. A administração exigiu que Bruna fosse respeitada.
"Vejo que tive mais problemas durante o período de transição, em que minha imagem parecia a de um homem gay, do que depois de realizar a transição", diz à Universa.
Hoje, ela mantém o cargo e trabalha com egressos, pessoas que cumprem regime semiaberto ou condicional (que podem trabalhar e devem retornar dentro de um período para prestar contas à Justiça). Aqui, ela relata a história de sua transição e como foi a aceitação no trabalho.
Chefe exigiu respeito
"Chamei meu chefe e disse: eu quero fazer minha transição e não me sinto bem do jeito que estou. Quero saber o que você acha, perguntei. Ele respondeu se minha decisão iria afetar meu profissionalismo e disse a ele que não. Aí, ele falou que era uma questão minha e de mais ninguém. Convocou chefes e disse que não queria ouvir nenhuma gracinha sobre mim.
Início dos trabalhos
Comecei fazendo escolta, subindo na muralha para vigilância e andando dentro de galeria de presídios em 2011. Inicialmente, é uma coisa assustadora: seja homem, mulher, cis ou trans. Depois de um tempo, você entende o procedimento e que há regras a serem cumpridas: como levar presos para cumprir uma rotina de dormir, tomar banho de sol, tomar banho. Existe uma rotina diária que não é assustadora.
O Estado do Espírito Santo, apesar da defasagem de servidores, é um padrão para o Brasil em política carcerária. Nossos presídios não são aqueles com ventilador e lotação.
Nós chamamos nossas unidades de presídio de procedimento, é como se fossem uma escola. Mas o primeiro onde trabalhei era o famoso cadeião em Linhares, no norte do Estado. Lá, sim, foi realmente assustador. Mas houve investimento e isso mudou.
Hoje, trabalha com reinserção. E leva sua experiência de vida
Hoje em dia, trabalho para uma vara criminal de Vitória, no setor de regime aberto. O meu trabalho é conseguir documentação de quem tem que se apresentar mês sim, mês não, à Justiça. Nós temos cerca de 9 mil pessoas em regime aberto no Estado, que saem da cadeia para trabalhar e estudar e desenvolver alguma atividade em regime aberto. Dou orientação, atesto comparecimento e dou encaminhamentos à Defensoria Pública a quem está na fase de progressão de regime por bom comportamento, por exemplo.
Atendo a duas ou três travestis nesse setor atual. Uma vez, elas me entregaram o documento meio constrangidas. Eu perguntava qual era o nome delas, o nome que não estava no documento.
Chamar pelo nome masculino é desesperador, você se sente ridicularizada -- já aconteceu comigo num aeroporto.
São pessoas que estão sendo inseridas novamente na sociedade. Elas precisam ter atendimento psicológico e assistente social para isso. Esse é o papel da Vara Criminal, do juiz de execução e da Secretaria de Justiça.
Coragem para tomar hormônios
Tive coragem para começar tomar hormônios apenas em 2014, após ter tido uma embolia pulmonar. Antes disso, tomei hormônios aos 21 anos e parei. Depois que me recuperei e saí do hospital, pensei: poderia ter morrido e ter tido uma vida infeliz e incompleta. Ninguém percebe que é transexual: nós nascemos desse jeito.
Como fui criada em uma família católica, acabei por ser ensinada que era errado ser trans, especialmente na década de 80 e 90. Existia somente a travesti, que era relacionada automaticamente à prostituição. Cresci ouvindo e vendo na televisão que era errado. Hoje em dia, a nossa geração abriu muitas portas.
Acolhimento
Meus chefes são maravilhosos, mas a realidade da mulher trans é essa. Sou formada em administração, tenho especialização em recursos humanos. Eu cursei Direito até o quarto período. Falo quatro idiomas. Isso é conteúdo acadêmico, mas o que eu quero dizer é o seguinte: eu tenho, a meu favor, estudo, e minha passibilidade [pessoas trans que são reconhecidas pelos outros com o gênero pelo qual eles mesmo se identificam]. Muitas são discriminadas por não terem passibilidade.
Para a mulher trans e travesti se destacar no trabalho, ela tem que ser brilhante.
O mínimo erro que eu cometa vão dizer que é porque sou trans. De tanto levantar e cair na vida, a gente vai endurecendo. Tenho uma amiga me diz que eu sou uma castanha: dura por fora e mole por dentro."
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