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Prostituição de mulheres trans: mortes e desaparecimentos em esquema em SP

Transfobia é uma rotina no mercado de trabalho - Getty Images
Transfobia é uma rotina no mercado de trabalho Imagem: Getty Images

Marcos Candido

Da Universa

01/04/2019 04h00

"Na primeira vez em que te negam um emprego, você se chateia e fala que foi só hoje. Na segunda vez, você entra em depressão. Na terceira, você pensa em algo universal: faz o primeiro programa. Mata sua fome. É a chance de colocar uma prótese parcelada. O problema é que quem te emprega como prostituta cobra R$ 20 mil por isso. E você fica trabalhando para pagar e permanece na mesma, enquanto essa pessoa lucra".

A fala é de Valéria Rodrigues, 40 anos. Ela é líder de uma ONG na Grande São Paulo que acolhe mulheres transexuais e LGBTs, que foram obrigadas a se prostituir na região de Ribeirão Preto, no interior paulista.

Nas últimas semanas, o local tornou-se lar para mais três vítimas libertadas pela Polícia Federal, Fiscalização do Trabalho e Ministério Público Federal. É o segundo ano que instituições unem forças para desmanchar as redes que atuam na região.

Valéria pede para não citarmos a cidade onde fica o abrigo para onde são enviadas as mulheres após o resgate. Essa é só uma das medidas para manter a segurança das mulheres que estão abrigadas lá.

Esquema explora vulnerabilidade

Segundo investigações da Polícia Federal e Civil, as redes de prostituição são independentes umas das outras e formadas por membros com ligação com o tráfico de drogas, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), que também lucram com a exploração sexual.

O mecanismo continua funcionando por se aproveitar da mesma exclusão social que anos atrás atingiu em cheio a vida de Valéria.

Como ela, trans expulsas de casa são recrutadas com a promessa de finalmente terem acesso a próteses mamárias, aplicações de silicone industrial e moradia. O preço é ficar no lugar determinado por quem as "salvou", pagando os serviços que receberam com o próprio corpo e comissões.

"Muitas precisam sair de casa para poder viver a metamorfose da transformação corpórea", explica Valéria.

Sua experiência de vida ajuda outras mulheres

"Falo por mim. Procurei emprego em salões de beleza, restaurantes e hospitais pedindo para varrer. As pessoas pediam desculpa, mas que não trabalhavam com 'esse tipo de gente'. Diziam que não tinham nada contra, mas que não pegaria bem pois vai que os clientes, que pagam a conta, não gostassem. A culpa era sempre transferida a terceiros. Quando você começa a transição, a única coisa que te sobra é a prostituição".

A presidente do Instituto Nice, Valeria Rodrigues, posa para o UOL no CIC (Centro de Integração e Cidadania) na Grande São Paulo - Iwi Onodera/UOL - Iwi Onodera/UOL
A presidente do Instituto Nice, Valeria Rodrigues, posa para o UOL no CIC (Centro de Integração e Cidadania) na Grande São Paulo
Imagem: Iwi Onodera/UOL

A Operação Cinderela, como foi chamada nesse ano, contou com MPF (Ministério Público Federal), Polícia Federal e a Fiscalização do Trabalho e cumpriu 18 mandados de busca e apreensão na cidade de Ribeirão Preto. Os denunciados vão responder por crimes como tráfico de pessoas, exploração de trabalho análoga à escravidão, exploração sexual e organização criminosa.

A investigação começou com a denúncia de duas vítimas que conseguiram fugir dos locais onde eram exploradas. Há relatos de suicídios, homicídios e traumas físicos e psicológicos sobre quem tentou fugir do esquema. Segundo depoimentos, as jovens transexuais eram recrutadas em regiões próximas da cidade e vindas principalmente do Norte e Nordeste por convite nas redes sociais. A idade média das vítimas é de 24 anos, segundo auditores fiscais do trabalho.

Como funciona o abrigo

"Após o resgate, elas chegam aqui cheias de desconfiança, pois nunca receberam uma mão amiga. Nós damos cursos de preparação profissional, fazemos matrícula na escola e pedimos o registro para a mudança de nome. Mudar o nome é um recomeço e dá um 'up' na vida", explica Valéria.

A desconfiança faz com que das mais de trinta vítimas libertadas, somente dez mulheres topassem receber ajuda entre 2018 e 2019. Duas delas se matricularam nos cursos oferecidos pela ONG, estudaram e já conseguiram emprego. Estão trabalhando em grandes empresas do ramo da moda e de logística.

A acolhida inicial proposta por Valéria é de 120 dias e dá atendimento médico e jurídico. Após o período, as portas continuam abertas com aulas de audiovisual e de corte e costura.

Combate à exploração

Para Luciana Gebrim, delegada da Polícia Federal responsável pela operação, as mulheres exploradas desconhecem alternativas. "A principal dificuldade é fazê-las entender que o que elas passaram é ilegal, de era exploração e que elas precisam de ajuda", explica.

"Apesar de termos encontrado mulheres cis e trans, identificamos que as trans tinham situações ainda mais precárias de trabalho", diz Magno Riga, auditor-fiscal do Trabalho.

A instituição liberou acesso ao seguro-desemprego para as mulheres que estavam submetidas ao esquema. Cerca de duas semanas após o início da operação, o auditor afirma ter liberado mais duas vítimas, de 20 e 31 anos.

"Você pensa: vou colocar um megahair, seios, mas sair desse mundo de glamour que te oferecem não é fácil", relembra Valéria. "Eu tive a sorte de conseguir sair e morar em um salão de dois homens gays, onde aprendi a mexer com cabelo. Nunca mais precisei mais olhar para a prostituição", conclui.

Errata: este conteúdo foi atualizado
A operação foi feita pela Fiscalização do Trabalho. A informação foi corrigida.