Deputada Martha Rocha: "Um dia após os tiros, acordei e fiz tudo igual"
Três décadas na polícia civil e única mulher a comandar a corporação no Rio de Janeiro (2011-2014), a deputada estadual Martha Rocha (PDT-RJ) vive rodeada de santos. Muito católica, pendurou na porta de sua sala, no quarto andar da Assembleia Legislativa do Rio, um pombo que simboliza o espírito santo. Há outro na parede atrás de sua cadeira. Você entra e se depara com uma estante inteiramente ocupada por cerca de 50 imagens: tem Nossa Senhora Aparecida, São Francisco de Assis, Virgem Maria entre outros.
Fala baixa, porém firme, contou que uma semana antes de receber a Universa foi ameaçada de atentado. Mais uma. Elas teriam passado de 14. Começaram ainda em 2007, quando titular da 28ª DP (Campinho), área de atuação de uma milícia. Quem chefiava a organização criminosa à época era o então vereador Luiz André Ferreira da Silva, o Deco.
Em janeiro de 2019, o carro blindado que levava ela e sua mãe, de 88 anos, à missa foi alvejado com tiros de fuzil, e o motorista atingido na perna. Era 9h de uma manhã de domingo, na Penha, zona norte da cidade. "Eu tenho tanta fé em Nossa Senhora, que sei que nos piores momentos ela estará ao meu lado", diz com tranquilidade a deputada, de vestido azul marinho, apontando para a estante. Ela afirma que não anda armada nem possui um revólver.
Perto de completar 60 anos e há um mês presidindo a CPI do Feminicídio, quer discutir maior proteção às mulheres, além da divina. Somente em janeiro, o Rio contabilizou 38 tentativas de assassinato contra mulheres, e 5 vítimas fatais.
Universa: O último Dossiê Mulher, do Instituto de Segurança Pública, apontou aumento nos números de crimes contra a mulher como estupro (4%) no estado entre 2016 e 2017. Onde as autoridades estão falhando?
Deputada Martha Rocha: Na falta de análise desses estudos para a implementação da política pública. O dossiê é um estudo superinteressante, mas não vejo ninguém se assenhoreando dele para fazer gestão da política para a mulher. Seja nas ações da polícia civil ou nas da polícia militar. O dossiê tem como base os registros da polícia civil, como horário e local do crime. Me pergunto: será que a PM olhou esse documento para direcionar seu patrulhamento? A polícia civil se debruçou no dossiê e pensou em fortalecer alguma delegacia que está na rota dos indicadores de maior incidência? A defensoria pública se fortaleceu?
Mas enquanto chefe da polícia civil, o que a senhora aponta como medida que tenha tomado?
Adotei um protocolo de atendimento às mulheres vítimas de violência. Quando uma turista americana foi violentada numa van (2013), havia um caso semelhante registrado numa delegacia de mulheres, e não se tomou providência nenhuma. Então, se a mulher que sofreu violência já chega na delegacia com o olho machucado, por exemplo, é só perguntar se ela autoriza que seja fotografada, para a imagem entrar no sistema de identificação policial. Dá para mandar a medida protetiva com a imagem da mulher.
Colocar arma na mão da mulher a protege?
Isso é tão absurdo, tão equivocado como achar que o episódio de Suzano poderia ter sido evitado se colocássemos uma arma na mão do professor [no início de março, dois ex-alunos entraram em uma escola e atiraram. Sete pessoas morreram no local]. As mulheres são atingidas com tudo que é encontrado: tampa de panela de pressão, tijolo, facão, cabo de vassoura, guimba de cigarro.
A arma é tão perigosa para a mulher que nas medidas protetivas temos apreensão da arma de fogo. Não tenho a menor dúvida de que isso vai potencializar a morte das mulheres. E as pessoas têm que entender o seguinte: a tutela da segurança é do estado.
Teria feito algo diferente enquanto no comando da polícia?
Não. A polícia civil é investigativa, de inteligência. Não é patrulhamento nem "bato-prendo-e-arrebento", o que é uma grande estupidez. Um exemplo recente: enquanto todo mundo achou um absurdo aquela mulher agredida na Barra da Tijuca, a Elaine Caparroz, ter permitido que um homem mais jovem fosse a sua casa, o delegado que fez a ocorrência (Rodrigo Freitas de Oliveira, da 16ª DP) não teve dúvidas em dizer que a agressão foi uma tentativa de feminicídio. Se ele não tivesse esse entendimento da lei, talvez fosse registrada uma lesão corporal. Outra: dentro da polícia civil não só promovi mulheres como zelei para que os inquéritos estivessem nas delegacias de mulheres.
E para que a CPI do Feminicídio?
A lei do feminicídio é uma evolução da Maria da Penha. Se essa dá visibilidade à violência contra a mulher e cria ferramentas de apuração e de enfrentamento, aquela mostrou que havia um retrato da morte das mulheres que não fazia parte do universo das estatísticas. A CPI vai ajudar a descobrir, por exemplo, se onde há casos de mulheres desaparecidas pode ter também notícia de feminicídio.
A senhora recebeu mais de 10 ameaças de morte, e em janeiro seu carro foi atingido por tiros de fuzil. Isso ainda acontece?
Semana passada recebi outra. Quanto ao dia 13 de janeiro, temos aí dois meses de investigação e espero verdadeiramente que a polícia civil me diga se foi tentativa de roubo, porque aconteceu às 9h15 da manhã de domingo. Mesmo sendo tentativa de latrocínio, não posso admitir que no mínimo dois elementos estejam com um fuzil para roubar um carro.
O que passou pela sua cabeça na hora?
Eu percebi que o motorista estava com uma fisionomia diferente. Perguntei o que era e ele disse: "Aí atrás". Eu olhei e já vi um no banco do carona com fuzil para o lado de fora. E quando eles emparelharam com nosso carro, naquele momento eu falei apenas uma frase: "Maria Santíssima, derrame suas bênçãos sobre nós". Achei que estava sendo vítima de um atentado, porque em novembro chegaram três denúncias dizendo que sofreria um, e que teria a ver com a milícia. Consegui sair daquela situação porque estavam ali dentro dois policiais. Um reformado no volante e uma civil no banco de trás. Mas o herói dessa história foi o [subtenente reformado da PM Geonísio] Medeiros. O que eu fiz ali foi manter a calma, cuidar da minha mãe e prestar socorro a ele depois que foi atingido.
Como as ameaças chegam à senhora?
Pelo Disque Denúncia. É sempre o mesmo argumento, voltado para a milícia da região onde atuei.
Por que o Rio de Janeiro não conseguiu desmantelar as milícias?
Aí você tem que perguntar para os outros chefes da polícia. Porque se acompanhar a minha trajetória na polícia, você vai ver que vários milicianos foram presos. Nunca vi a milícia com aquele olhar pueril, do policial tomando conta do seu território, para que o traficante não chegue. Sempre vi que havia um interesse financeiro ali. A milícia é tão grave quanto o tráfico de drogas.
Os dois nomes apontados como possíveis autores do assassinato da vereadora Marielle Franco são suspeitos de integrar um grupo de matadores. Dá para dizer que foi uma atuação de milícia contra ela também?
Vou me permitir não dizer. Eles atuavam numa região onde não atuei diretamente. E o próprio [deputado federal] Marcelo Freixo já falou que a Marielle não ia naquela região. Acho o caso da Marielle complexo, mas o da juíza Patricia Acioli também foi. E o do Amarildo, o do menino Juan. Ou as pessoas vão dizer que houve mandante e a motivação, ou somente a motivação, ou vão dizer: "Eu não consigo (resolver o crime)". Com todo respeito, mas dizer que a postura de esquerda de Marielle foi o suficiente [para o crime] não me basta. No meu caso, eu sabia que havia uma ameaça. A Marielle não teve isso.
Com essa rotina de ameaças, nunca repensou a carreira?
Não, porque tudo o que sou e o que tenho, eu devo à polícia civil. Se houver reencarnação, o que não é o meu caso, porque sou católica, mas peço para voltar na mesma família, e de preferência na mesma instituição. Claro que a gente tem medo, mas eu não sou refém do medo. Eu tenho tanta fé em Nossa Senhora, e é só olhar para a minha sala que você vai ver isso. Sei que nos piores momentos ela estará ao meu lado. No dia seguinte a esse fato, o dos tiros, por exemplo, acordei e saí no mesmo horário, e fiz tudo que eu tinha pra fazer.
Por que a mulher na polícia e na política incomoda?
Há um entendimento de que as mulheres roubam os espaços dos homens. Até nos lugares ditos masculinos. A polícia tinha dez mil homens e 2 mil mulheres quando eu fui chefe. E foi mais fácil ser chefe do que delegada, porque aí você tem o poder. Eu vivi situações em delegacias em que a parte chegava e perguntava pelo delegado. Quando eu respondia "pode falar", a pessoa virava as costas e ia embora. Hoje as mulheres estão inseridas na polícia civil e ocupam cargo de destaque.
Como foi seu contato com o feminismo?
Sou filha de um pai feminista. Ele dizia que a gente tinha que estudar. E que se a gente não gostasse do marido, era para mandar ir embora. Ele me mostrou que havia uma igualdade. Ele curtiu muito mais eu ser policial do que a minha mãe, me visitava em todas as delegacias.
Quero dizer de uma maneira muito rude que a maior sacanagem da minha vida foi meu pai não estar vivo quando eu virei chefe de polícia. Só essa frase verbaliza o que eu sinto. Ele morreu com Parkinson.
Ele não te colocou pressão para casar ou ter filhos?
Não. Saí de casa com 35 anos. Ele dizia: "Vá ficando aí e junte dinheiro para comprar um apartamento". Quando comprei, ele me acordou num dia em que minha mãe não estava e disse: "Hoje é o dia que você vai se mudar, porque sua mãe vai chegar daqui a pouco e vai chorar, então é uma boa hora. Faça sua mala". Eu fiz e ele me levou até o apartamento. E de noite levou a minha mãe para visitar.
Nunca quis dividir sua vida com alguém?
Sempre fui namoradeira e bem amada. Só não quero ser casada. Sou solteira, mas não sou abandonada. Hoje estou namorando. Ele é meu quase marido. E fica furioso quando brinco assim. Só não é político. É engenheiro. Esse erro a gente não comete! Mas eu quero namorar. Ele na casa dele e eu na minha. Viver uma vida a dois, com espaços.
Também nunca quis ser mãe?
Brinco que nunca tive marido para dar jantar nem filho para criar. Porque ser mãe é uma tarefa sublime. As mulheres abrem mão de sua vida e a maternidade exige retaguarda e parceria. Então nunca tive essa vontade de ser mãe.
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