"Me desculpe se eu gaguejar, ainda é muito difícil lembrar o que aconteceu", diz a mineira I.M.S., 51, vítima de estupro marital, como é chamada a violência sexual cometida pelo próprio marido ou companheiro. Ela prefere ser identificada apenas com as iniciais.
As agressões vividas por I. eram constantes desde o início do casamento, que durou 29 anos. "Em janeiro de 2016, ele chegou bêbado em casa e me violentou. Eu dizia: 'Não quero, não quero'", relembra. "Ele tapou minha boca com uma mão, para eu não gritar, e, com a outra, colocou uma faca no meu pescoço. Me levou para o quarto, me estuprou por horas e de todo jeito que você possa imaginar". O casal se divorciou, e ela, agora, recebe ajuda de uma advogada voluntária para dar entrada no processo contra o ex, por causa das agressões que sofreu.
Violências sexuais praticadas por cônjuge ou companheiro representam 13,15% dos crimes de estupro praticados no Brasil, segundo o Atlas da Violência de 2018. Segundo especialistas, o número de registros não reflete a quantidade dos casos.
"É o tipo de estupro mais subnotificado porque as mulheres casadas não sabem que estão vivendo uma violência nem que podem se recusar a ter uma relação sexual", afirma a advogada Maíra Zapater, doutora em Direitos Humanos pela USP (Universidade de São Paulo), especialista em direitos das mulheres e professora da FGV (Fundação Getúlio Vargas). Além disso, mulheres têm medo de denunciar e, em muitos casos, são dependentes financeiramente do marido.
Integrante do projeto Bem Querer Mulher, programa ligado à ONU Mulheres que oferece assistência a vítimas de violência doméstica, a advogada Alessandra Nuzzo diz que é questionada constantemente sobre a questão do estupro marital. "Nas palestras que dou pelo projeto, sempre há mulheres que me procuram para perguntar se o que sofreram foi uma violência", diz.
Um dos piores casos com os quais já lidou foi de uma mulher de 57 anos que disse ter que fazer sexo anal com o marido em troca de comida para os filhos. "Ela pedia que o homem fosse comprar a 'mistura' das crianças, e ele só ia se ela tivesse relação com ele. Ou seja, é estupro", diz.
"Ainda existe a ideia do 'débito conjugal', como se, por ser casada, a mulher fosse obrigada a manter relações com o marido", afirma Alessandra. "Mas a legislação hoje é muito clara: se a mulher é forçada a transar contra sua vontade, mesmo que com o cônjuge, é crime."
Em casos de estupro simples, a pena varia de seis a dez anos de prisão. Se o crime for cometido pelo marido ou companheiro, a punição é maior: vai de nove a 15 anos.
Professora de direito da FGV, Maíra Zapater explica que, até 2005, caso o estuprador se casasse com a vítima, o crime era anulado. "Quando essa lei foi criada, em 1940, o problema que o legislador via no estupro era que a mulher não conseguiria mais casar, por não ser mais virgem. Então, se casasse com o agressor, a questão estaria resolvida, na visão da época."
Ela diz que, até a Constituição de 1988, era comum haver decisões de juízes, baseadas em análises de autores de direito penal, dizendo que, se o marido estuprasse a mulher, "mas não usasse violência além do necessário", não era considerado crime. "A legislação reflete o espírito de um tempo. Havia todo um modo de pensar as relações entre homens e mulheres que só começou a mudar porque a Constituição exigiu igualdade entre os gêneros."
A legislação envolvendo crianças e adolescentes era ainda mais cruel e mudou somente em março de 2019, com a sanção de uma nova lei. Até então, o casamento de menores de 16 anos era proibido, exceto em caso de gravidez.
Ou seja, caso ocorresse um estupro de uma menor de 16 anos e ela engravidasse do agressor, ela seria emancipada para poder se casar --mesmo quando a vítima era menor de 14, o que seria considerado estupro de vulnerável. Ainda assim caberia processo criminal. A regra foi revogada e, atualmente, o casamento de menores de 16 é proibido em qualquer circunstância.