Quando o piauiense Getúlio Abelha, 26, aparece no início do clipe "Laricando", gravado em um mercado municipal de Fortaleza (CE), você não sabe se está vendo o cantor David Bowie ou a diva Lady Gaga. Mas, quando ele começa a cantar, o som está mais para Calcinha Preta. O cantor de forró eletrônico "torce o nariz" dos mais conservadores com as músicas que tratam de relacionamentos e violência contra a população LGBT com bastante deboche. "E olha, eu faço isso sem querer. Costumo dizer que se for para morrer chorando ou rindo, eu vou morrer 'chorrindo'", fala em entrevista à Universa por telefone.
O artista nasceu em Teresina, no Piauí. Começou a cantar ainda criança por causa do pai, que gostava da "gandaia". "Ele era o estereótipo do forrozeiro: rapariguento, tinha um carro amarelo, bebia cachaça e não pagava pensão", diz, dando risada. "A vida dele era no bar, enquanto ele me levava junto. Aí o cenário estava pronto: eu era uma criança 'estranha', que gostava de cantar, estava no cabaré, com um palco à disposição. Eu vivia dando show, cantando no karaokê", conta. A música favorita dele, na infância, era "Garçom", de Reginaldo Rossi. "Cantava tão mal, era um horror". O pai incentivava esse lado performático do menino. "Ele me usava para xavecar mulher, se gabava que eu era filho dele e elas ficavam interessadas."
Com cabelo vermelho e looks conceituais, O clipe de Getúlio Abelha "Laricado" conta com mais de 110 mil visualizações, mas ele não sabe se é cantor, diretor ou roteirista. "Isso de música é muito recente". Getúlio também não sabe se é um homem ou uma mulher. "Todo dia eu me sinto de uma forma. Não faço a mínima ideia do que sou, mas não penso muito nisso. Deixo acontecer", fala. Por uma questão de clareza, o artista permitiu que a reportagem o tratasse no masculino. "Mas você podia deixar o povo tudo doidinho, cada hora me chamando de uma coisa".
O artista não pensa sobre o próprio gênero por acreditar que tem outras prioridades para ocupar sua mente. "Tem questões mais urgentes para mim, como a violência contra pessoas da comunidade LGBT", afirma. Na última semana, por exemplo, Getúlio viu uma amiga levar um tiro no joelho. "Estávamos saindo de um bairro, passou uma moto e atiraram nela", conta. Ele acredita que foi um caso de homofobia. "Nem tentaram assaltar a gente. Apenas dispararam", diz. O artista, porém, nunca foi agredido na rua. "Eu sou o Homem-Aranha. Para me pegar, é difícil. Saio correndo, pulo muro. Estou sempre pronto para a briga, mas o que mais faço é fugir", fala.
A violência é um dos temas de seus shows, que, segundo ele, pode fazer o público chorar, mas também inclui humor e momentos sem sentido. "O povo mais crítico, mais militante, reclama disso. Eu me sinto um pouco culpado, porque fico em conflito: trato de assuntos como morte, mas de um jeito debochado. Mas acho que isso é mais um sentimento de culpa minha", fala. "Eu fui criado para ser assim. É uma característica do povo Piauí e do Ceará, de tratar as coisas com humor." Getúlio diz que o receio da morte desperta seu lado escrachado. "Se alguém vir me dar uma facada, eu vou dar um gritão e fazer um show."
Assim como "distorce" o forró eletrônico, Getúlio Abelha também tenta mudar a própria família unindo o choque de seu visual com o didatismo na hora de conversar com eles. "Quando eu tinha 16 anos e meu pai percebeu que eu era marmota, como a gente fala sobre uma pessoa fora do comum, falei para ele se acostumar. Ele sempre foi de me fantasiar, então não era agora que eu iria mudar", afirma. "Ele sempre me respeitou muito como uma pessoa LGBT, porque sempre fui muito didático ao falar com ele. Meu pai, no entanto, ainda é muito machista, então converso com ele, tento ser útil."
Segundo o cantor, o didatismo é a sua principal arma em uma "batalha" que a comunidade LGBT é obrigada a lutar todos os dias. "À medida que estamos conquistando espaços de sobrevivência, a gente também tem enfrentado uma reação mais violenta. O nosso time tem se expandido, mas essa guerra tem aumentado. Nós ficamos na defensiva em uma guerra que não é uma escolha para as pessoas LGBT, mas que é o único jeito de resistirmos", afirma. "Não é bom, não é divertido, nem deveria ser preciso, mas já que estamos aí, a gente luta, né?"