Ele é trans: "Sou tratado como golpista porque meu nome não foi atualizado"
Nunca passaria pela cabeça de quem conhece o executivo de vendas Alexandre Gael, 37, que um dia ele já teve o corpo de uma mulher. Os documentos de identificação dele, no entanto, contradizem a aparência masculina que ele apresenta. E toda vez que precisa mostrá-los é um processo desgastante. "É comum acharem que eu sou um golpista, um estelionatário", fala em entrevista à Universa.
Atualmente desempregado, Gael, que é da Ilha do Governador (RJ), está há três meses no processo de retificação de seus documentos para o nome masculino. Ele entregou, em janeiro, as certidões que precisava, mas o pedido já teve duas devolutivas e não têm previsão para ser deferido. "Estou desesperado porque tenho que voltar para o mercado de trabalho", fala.
A ansiedade é porque, de acordo com ele, o fato de ainda constar o nome feminino em seu RG e CPF o faz perder vagas para as quais foi selecionado, não conseguir sacar seu próprio salário no banco e ser barrado na entrada de prédios onde vai fazer processo seletivo. "As pessoas acham que retificar o nome é um capricho, mas é uma questão de necessidade minha. Quando pegam o meu RG, viro alvo de deboche, de comentários."
Segundo o psicólogo Breno Rosostolato, especializado em gênero, uma das afirmações da pessoa transgênero é o nome e ignorar a forma que ela prefere ser chamada a deslegitima. "É como se ela passasse a não existir diante de você, porque não está levando em consideração toda a história e a dor que levou aquela pessoa transgênero até aquele momento", fala o especialista. "As consequências psicológicas disso são de um sofrimento horrível."
No banco
"Estou transicionando há cinco anos, mas as coisas começaram a ficar mais difíceis quando fiquei mais masculino.
Saquei com o mesmo documento por um ano, um dia um funcionário alegou que meu documento estava adulterado, pois tinha meu nome de registro, mas assino como Alexandre. 'O senhor quer que eu dê para o senhor o dinheiro que está na conta de uma mulher?', ele perguntou, ignorando meu RG original, minha carteira de trabalho que constava a assinatura da empresa que creditou o pagamento na minha conta documento.
A transfobia já acontece quando ignoramos o fato de que algo do tipo existe e vive entre nós, mas passar como estelionatário com os meus próprios documentos originais? Minha conta, meu dinheiro, meu trabalho... será que as pessoas não acreditam que alguém como eu existe? Chamei a polícia, porque disse que, já que eu sou um golpista, facilitaria a vida dele já chamando os oficiais. Tenho até hoje uma ação contra eles na justiça."
Na portaria
"Quando vou entregar meu documento em alguma portaria é sempre a mesma coisa: a pessoa olha, não entende o fato do nome no RG ser feminino, mas ter um homem na frente dela. O atendente leva o meu documento até o fundo, os seguranças olham para mim, checam novamente o meu documento. Se a empresa não está pronta para receber alguém como eu, acabo passando nervoso.
Em processo seletivo, então, é um sofrimento. Os entrevistadores estão esperando um Alexandre, mas eles me anunciam com o meu nome de batismo no feminino. Ninguém entende nada e, às vezes, não me deixam subir. Além disso, já perdi vagas para quais eu fui selecionado quando a empresa recebeu a documentação com o nome feminino."
Para alugar apartamento
"É muito difícil conseguir alugar um imóvel. Quem vai dar credibilidade para um cara que nem eu, com a minha aparência, com o nome que eu tenho? As pessoas acham que sou uma fraude o tempo todo. Hoje eu tenho um imóvel alugado porque contei a minha história para a dona da imobiliária e ela soube tratar o assunto. Ela fez todo o contrato no meu nome social e, como eu assino Alexandre, o cartório reconheceu a minha assinatura e o contrato ficou válido. É incomum"
No avião e no ônibus
"Ao pegar um avião ou um ônibus, eu tenho que emitir a passagem no meu nome de batismo. Isso é um 'deboche legítimo', já que muitas pessoas acham engraçado chamar alguém com a minha aparência pelo pronome feminino. Ao mesmo tempo, este constrangmento não é passível de punição.
Além disso, acho um absurdo porque se acontecer um acidente vai ter o nome feminino, mas um corpo barbado. Corro o risco de ser enterrado como indigente."
Atrás da retificação
"Estou há pelo menos três meses atrás da retificação do meu nome e do meu gênero jurídico. Tive que ir até dez cartórios diferentes para tirar as certidões que o provimento pedia, mas o meu processo já teve duas devolutivas. Em uma delas, a promotora do Ministério Público do Rio de Janeiro me tratou como 'a interessada'. Eu achei isso um absurdo, foi como se ela quisesse reafirmar o 'direito' dela de poder me tratar como ela quiser e não como eu prefiro. Principalmente enquanto o meu gênero jurídico não estiver retificado.
Estou desesperado para conseguir mudar meus documentos, porque estou há seis meses desempregado. Até agora, sobrevivi com o seguro-desemprego, mas perco o direito em maio. Com o nome corrigido, vou conseguir um outro trabalho mais facilmente."
Nome é dignidade
"Em uma entrevista de emprego, falei que a coisa mais incrível que já fiz foi tomar a decisão de ser quem eu sou. Vim para São Paulo com uma mochila nas costas, com R$ 2 mil no bolso, atrás de tratamento hormonal. E, junto com esse tratamento hormonal, eu também vim atrás da minha dignidade.
Retificar o meu nome é o último passo para eu completar esse processo. Vou me sentir menos ansioso, porque tenho pavor de perder um trabalho. O nome masculino que vai me dar a oportunidade das pessoas do mercado de trabalho me reconhecerem como sou como profissional: um cara capaz. Eu trabalho, atualmente, com as oportunidades que me são dadas. Com os documentos corrigidos, vou conseguir correr atrás das oportunidades que eu quero."
Não respeitar nome social de pessoa transgênero é crime?
O advogado Paulo Iotti, especializado no combate à LGBTfobia, diz que ignorar o nome social de uma pessoa transgênero é "inconstitucional e inconvencional, por desrespeito ao direito humano e fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade".
De acordo com o Código Civil, quem desrespeita o nome social pode ser processado por dano moral, com direito a indenização. "A legislação protege o pseudônimo, então, por analogia, protege também o nome social", fala Iotti. O valor da indenização é fixado pelo juiz e pode ser de R$ 5 mil a R$ 20 mil.
Se uma pessoa transgênero tem um serviço negado porque seu documento não está retificado, o estabelecimento também poderá ser processado por dano moral. "O local precisa fazer um cadastro com nome civil, mas tem que tratar o cliente pelo nome social", afirma o advogado.
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