"Tinha medo de sexo": como recuperar a vida sexual após um estupro?
A nutricionista Milena*, 27, foi estuprada quando tinha 21 anos, mas na época acreditou que tinha sido apenas um "sexo ruim". Ela conta que só foi se dar conta de que tinha sofrido violência sexual em 2016, quando as discussões sobre estupro se intensificaram depois que uma jovem foi violentada por mais de 30 homens. A memória fez com que a vida sexual de Milena com o atual namorado fosse praticamente inexistente por um ano. "Quando íamos transar, eu só recordava da cena [do estupro] e sentia medo", conta.
A publicitária Patrícia*, 24, passou por situação semelhante. Ela, que é lésbica, foi estuprada por um homem durante a festa de recepção dos calouros de sua faculdade, em 2014. Ela conta que demorou para entender o que tinha acontecido, mas que não conseguia sentir prazer no sexo consensual e que se pressionava, muitas vezes, a ter relações, mesmo com mulheres. As reações das duas vítimas não são estranhas: a vida sexual pode ficar muito comprometida após uma situação de abuso ou estupro. Então, como recuperá-la de forma saudável e superar a situação?
Entendendo o efeito da violência no corpo
Ana Lúcia Castello, especialista em psicologia clínica pela Universidade Federal de São Paulo e terapeuta de EMDR (técnica que ajuda no processamento de traumas), explica que o cérebro humano ativa as lembranças do momento do abuso quando a pessoa se depara com situações que possam remeter àquela memória.
"Quando a pessoa vê ou vive algo parecido com esse trauma, a parte da memória que registrou o trauma é ativada. Essas sensações corporais ativas não deixam a pessoa viver direito, porque ela passa a se sentir desconfortável", diz.
Castello afirma que o corpo tem um movimento aversivo: uma das reações mais comuns é ter nojo do ato sexual, mesmo o consensual. Cheiros e visões podem também ser gatilhos para relembrar o estupro. Inclusive, é comum que mulheres desenvolvam vaginismo e outros transtornos. Patrícia, por exemplo, relata ter tido TOC e desenvolvido comportamentos destrutivos --usava drogas e se colocava em situações de risco-- antes de se tratar.
Terapia é o primeiro passo
Tanto a especialista quanto as vítimas afirmam que procurar terapia é importantíssimo para começar a processar o ocorrido. E é essencial que o profissional respeite o relato e não minimize a dor de uma violência sexual. "O trauma fica 'encapsulado' no cérebro. Se ele não é trabalhado, vai ficar para sempre torturando o inconsciente da pessoa", diz Castello.
Não se sinta 'presa' ao estupro
A terapeuta ainda explica que a vida da pessoa estuprada não deve se resumir ao acontecimento --ao entender isso, argumenta, o processo de superação fica mais fácil.
"O sofrimento existe em qualquer caso, porque a pessoa se sente desprotegida, culpada. Ela não vai esquecer um trauma, mas, com apoio e terapia, ela se distancia dele e os pilares da memória do estupro ficam menos ativos; assim, a vítima consegue prosseguir com a vida e retomar atividades que foram eliminadas por conta dessa lembrança".
Saiba dizer "não", se quiser
Patrícia conta que, quando conheceu sua atual namorada, foi crucial entender o que era consentimento para ela. "Antes, quando eu fazia sexo, não sentia prazer. Às vezes até receber um oral me deixava mal. Foi com essa menina nova que eu entendi que eu tinha direito de falar 'não' e que não precisava continuar o sexo se não estava tendo prazer".
Castello afirma que vítimas de violência sexual costumam ter mais consciência sobre o que é consentimento durante a transa. "A pessoa pode começar a ter mais cuidado com a vida sexual, percebo que ela pode se tornar mais seletiva quando entende isso".
Tudo tem seu tempo
A terapeuta aconselha que a pessoa não se pressione a recuperar a vida sexual rapidamente ou transar tão logo. A vítima precisará passar por um processo de recuperação, que para cada uma leva um tempo, até ter certeza de que que fazer isso porque está preparada e com vontade.
Milena conta que teve muito apoio do namorado para superar o trauma: "Eu contei para ele e ele não forçou nada. Lembro que ficamos um tempo sem ter relação e ele me ajudou muito, sem cobranças".
"Eu sempre aconselho que a pessoa seja sincera com o parceiro ou parceira e relate tudo que aconteceu, para que a pessoa entenda como ajudar e deixar a vítima o mais confortável possível", diz Castello.
Converse com pessoas ao redor
Trocar experiências com amigos e outras vítimas pode auxiliar, e muito, no processo de recuperação. "Fui entrando em grupos de Facebook e conhecendo meninas incrívei; eu as chamava para conversar e trocar ideia. Foi como comecei a contar sobre o que eu tinha passado. Essas mulheres me convenceram de que eu precisava fazer terapia", lembra Patrícia.
*Os nomes foram trocados para preservar a identidade das entrevistadas
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