"Juntei moda e biologia para criar acessórios feitos de câmaras de pneus"
Biologia e moda parecem áreas muito distantes? Andreza Veiga, 43, quis unir esses dois mundos com um intuito: o consumo sustentável. Mãe de dois garotos, de 18 e 15 anos, a paulistana se afastou da área biológica quando engravidou e resolveu se aventurar nas artes.
Foi essa transição que deu início ao nascimento da Recman, grife de acessórios produzidos a partir de câmaras de pneu, feitos em parceria com uma oficina independente da comunidade da Paraisópolis, em São Paulo. Andreza conta à Universa como esse processo aconteceu e como colocou toda sua formação e nesse projeto.
"Sempre fui muito ligada ao meio ambiente e à preservação. Pensava em fazer Zootecnia, mas resolvi fazer Biologia e estudei até a pós-graduação, quando comecei a trabalhar com pesquisa científica na área de biologia molecular. Então, eu casei, fiquei grávida e abandonei o trabalho, porque mexia com produtos radioativos. Quando meus filhos estavam com 1 e 3 anos, resolvi estudar Artes Plásticas, o que me levou a desenhar. E fui para o caminho da moda.
Depois que me formei em Artes Plásticas, trabalhei com design de joias e moda praia. Fui migrando meio que sem querer; tudo aconteceu muito naturalmente. Mas em determinado momento percebi que o que eu estava fazendo não tinha muito a ver com meus desejos e ambições.
Foi quando surgiu a ideia de usar a reciclagem de alguma forma. Uma amiga minha que trabalhava com artesanato me apresentou a câmara de pneu; disse que tinha visto várias delas jogadas como lixo no chão durante uma de suas viagens. Refleti sobre esse assunto e resolvi fazer uma linha de acessórios masculinos. Como aquilo me remetia a carro e estradas, pensei que seria um apelo legal para esse público. Comecei a ver o que precisava fazer para reciclar esse material, que tinha muito descarte e é muito nocivo ao meio ambiente por demorar anos para se decompor.
Fiz pesquisas e o processo de reciclagem deu certo. Em 2013, lancei a primeira coleção Recman. Um ano depois comecei a fazer acessórios femininos. Essa abertura do leque aconteceu porque as meninas me pediam peças. O que foi crucial para a marca, que hoje tem público feminino forte. Na verdade, tento fazer um design para todo mundo, qualquer gênero.
Faço a coleção, começo do zero. Hoje é difícil conseguir essas câmaras, porque os pneus são todos obrigados a ter um destino, não podem só ser descartados. Eu pego de uma transportadora, que tem frota mais antiga, e de empresas de tratores. E sempre utilizo água de reúso.
O contato com Paraisópolis aconteceu sem querer. Quando comecei a procurar por mão de obra, uma amiga me indicou uma oficina, porque os caras tinham maquinários ótimos. Fui procurá-lo e o lugar era gigante! Mas, incrivelmente, eles não deram conta. Fiquei desesperada. Foi quando uma pessoa que trabalhava lá me ligou, dizendo que estava disposta a trabalhar para mim. Nós nos encontramos e fechamos essa parceria para desenvolver minhas peças. O Neto é um senhor que mora há 40 anos na comunidade e é uma figura de liderança. Tem uma família enorme, seis filhos... É muito respeitado. Isso foi maravilhoso para o conceito da marca, que fluiu de forma orgânica. Mesmo precisando às vezes de mais produção, eu prezo pela parceria com o Neto. Fiz questão de permanecer com ele. Isso que faz parte da cadeia que a gente criou, incluindo a oficina que construímos na casa dele.
Toda a mão de obra é da comunidade de Paraisópolis, não tenho vínculo nenhum com ONG. É uma oficina independente, que produz mais de 70% dos meus produtos. Uma família que está comigo desde o começo. Trabalhar com a borracha não é fácil, exige muito das máquinas. Elas quebram, a manutenção é cara. Eu e minha equipe damos muita importância para o acabamento das peças, porque o material já é reutilizado e rústico.
O que isso significa para mim hoje? Ah, eu fui criada com o contato na natureza, meu pai não é botânico de formação, mas é autodidata no assunto. Considero, inclusive, que ele é mais biólogo do que eu. Eu sempre tive esse contato e incentivo para olhar e dar importância para a sustentabilidade. Eu devo muito isso a ele.
Fui crescendo e meu interesse sempre foi juntar moda e biologia. Hoje me sinto realizada. Não me enquadro nas exigências de moda, que precisa pertencer a certas condições. Não me identifico com isso. Me importar com a sustentabilidade me preencheu, porque de alguma forma eu estou contribuindo. Não tenho a prepotência de imaginar que minhas peças vão trazer mais consciência para todo o mundo, mas espero que alcance meus filhos e as pessoas que trabalham comigo. O que acredito já ser algo positivo.
O contato com esse tema mudou meu estilo de vida. Em 1999, quando me formei em Biologia, esse tema existia para mim na minha bolha, mas era muito distante das pessoas comuns. Era um assunto que eu tratava com quem se importava. Hoje não é assim. Uma hora as pessoas começaram a olhar para isso. Não na parte de consumir, o que ainda é ruim. Principalmente pelo fato de que algumas pessoas usam a sustentabilidade de forma banal para tentar vender produtos com apelação.
Hoje, a venda dos produtos da Recman para mim é uma consequência. Coloquei minha formação e minha vida nesse trabalho. Espero uma recompensa e um retorno financeiro, claro, porque é como eu me mantenho. Além disso, minha intenção é levar consciência pelo menos para uma parcela do mundo e para aqueles em que eu acredito. Existe algo maior que funciona a partir das pequenas coisas. Consumir algo que tem toda essa história já é uma mudança positiva. Minha intenção genuína é ter empatia."
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