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Por que salvar a relação de uma crise é visto como função da mulher?

Getty Images
Imagem: Getty Images

Heloísa Noronha

Colaboração com Universa

26/04/2019 04h00

Independentemente de qual seja o motivo de uma crise conjugal, estamos condicionados a acreditar que é a mulher quem precisa tomar à frente e "dar um jeito nas coisas": demonstrar (mais) paciência até tudo se acalmar, chamar o par para conversar, se conformar que "casamento tem fases ruins e fases boas", discutir o relacionamento. Seja qual for o problema, ele só será solucionando se a mulher tomar algum tipo de atitude --nem que isso signifique não tomar atitude alguma. Mas se um relacionamento é composto por duas pessoas, porque atribuir a apenas uma delas a responsabilidade por reparar os conflitos?

A principal justificativa vem da construção cultural dos papéis de gênero: os homens sempre receberam o estímulo para ganhar dinheiro, prover, ter sucesso profissional, se aventurar pelo mundo. Às mulheres, porém, couberam as funções de cuidar da manutenção do lar e dos filhos.

Para a psicóloga Valéria Ribeiro Neves, de São Paulo (SP), ainda que muita coisa tenha mudado, as religiões --sobretudo as cristãs-- também se encarregaram, ao longo da história, de associar as funções do cuidar e do apaziguar às mulheres. "Isso foi disseminado, principalmente, pela valorização do ato de se sentir grata por ter uma família", diz.

Segundo Mara Lúcia Madureira, psicóloga especializada em terapia cognitivo-comportamental, de São José do Rio Preto (SP), a responsabilidade atribuída à mulher de salvar a relação é um ranço do modelo patriarcal obsoleto, alimentado por crenças infundadas e interesses machistas em subestimar, subordinar, explorar e abusar de mulheres, a fim de evitar a competição material por poder, controle e prestígio social.

"O ingresso feminino no mercado de trabalho e na política significa competição direta por vagas e cargos antes ocupados exclusivamente por homens. A criação de barreiras à ascensão feminina representa um esforço para manter o prestígio e a ideia de supremacia masculina. Portanto, a propagação de 'rainha do lar' e cuidadora é uma tentativa de conferir algum consolo e mantê-la quietinha, sem representar nenhum tipo de ameaça à estrutura socialmente consolidada há tanto tempo", explica.

Por mais que os costumes evoluam, são necessárias gerações e mais gerações para mudar pensamentos arraigados. Se levarmos em conta que há apenas 60 a única opção viável para uma moça considerada "de família" era se casar --virgem, obrigatoriamente-- e se preocupar com a limpeza da casa, o bem-estar do marido e a educação dos filhos, percebemos que ainda há um longo caminho a percorrer.

Homens aprenderam errado que demonstrar sentimentos é fraqueza

De acordo com a psicanalista Loide Berenice Barreiras, de São Paulo (SP), também é válido relembrar que a herança cultural patriarcal ainda tem um peso enorme na comunicação (ou na falta dela) entre homens e mulheres.

"Se pararmos para pensar bem, um casamento à base de amor é algo muito recente na história da humanidade. Homens e mulheres da contemporaneidade foram criados por pais que reproduziram, ao educar seus filhos, modelos antigos de masculino e feminino dados pelos próprios pais. Ainda carregamos muitos traços dessa herança, como acreditar que homem não deve chorar. Se hoje ainda é a mulher quem se dispõe a tentar salvar uma relação e chama o par para conversar, é porque ela foi preparada e incentivada a lidar com sentimentos. O homem, não", comenta Loide.

Não há como consertar um relacionamento sem diálogo. E não existe diálogo produtivo sem que as pessoas envolvidas falem abertamente sobre seus sentimentos, desejos e necessidades. Eis aí outro entrave: há um grande preconceito em cima do termo "DR", principalmente por parte dos homens. "Se a mulher quer conversar sobre o que não está bem, ele já se posiciona na defensiva. Os pedidos dela são entendidos como cobranças e as insatisfações são ouvidas como críticas. Isso é uma questão de gênero que afeta muitos casais. Se ambos se colocassem disponíveis a ouvir o outro, tudo seria mais simples", aponta Marina Vasconcellos, terapeuta familiar e de casal pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

"Há mulheres que acreditam no 'felizes para sempre' e nessa fantasia consideram que, por serem mais românticas, devem resgatar o relacionamento com a força do seu amor. Elas conseguem expressar mais os seus afetos, o que pode auxiliar na reaproximação de ambos", comenta Joselene L. Alvim, psicóloga clínica de Presidente Prudente (SP) e especialista em Neuropsicologia pelo setor de Neurologia do HCFMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo). No entanto, o que parece uma "vantagem", na verdade, é uma prisão, já que encarrega apenas a mulher de se esforçar pelo casamento.