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"Vamos até o fim", diz federação que impediu patinadora trans de competir

Maria Joaquina em competição - Arquivo Pessoal
Maria Joaquina em competição Imagem: Arquivo Pessoal

Debora Miranda

Colaboração para Universa

26/04/2019 15h15

"O documento dela é de menino. Então, ela não pode patinar como menina." Esse é o principal argumento usado por Moacyr Neuenschwander Junior, presidente da CBHP (Confederação Brasileira de Hóquei e Patinação) e da CSP (Confederação Sul-Americana de Patinação) para que a patinadora Maria Joaquina, menina transgênero de 11 anos, não pudesse participar de competições dessas entidades.

A discussão começou em 2018, quando a jovem tentou disputar o Campeonato Brasileiro. Ela acabou sendo aceita e ficou em segundo lugar na competição. Segundo seus pais, Gustavo e Cleber --que adotaram Maria Joaquina e seus dois irmãos em 2016--, as cinco primeiras colocadas se classificariam para o Sul-Americano, mas Maria Joaquina não foi convocada.

Teve início, então, uma briga judicial que se estendeu até um dia antes do início da competição, na última segunda-feira (22). Maria Joaquina entrou na pista chorando e caiu diversas vezes. Segundo os pais, ela seria a última a patinar, mas, dez minutos antes, a ordem das apresentações foi alterada, fazendo com que ela tivesse que entrar imediatamente, sem testar a pista.

Em entrevista exclusiva à Universa, Neuenschwander Junior explica as motivações de ambas as federações, diz que "o que tem de mentira e baboseira nas redes sociais e em matérias publicadas até agora é brincadeira", afirma que dará sequência à ação judicial e que vai até o fim. "Nós vamos, para proteger essa criança e as entidades."

Leia, abaixo, trechos da entrevista.

Universa: Queria saber qual é o posicionamento da federação. Por que, a princípio, não permitiram que Maria Joaquina participasse da competição?

Moacyr Neuenschwander Junior: Primeiro de tudo, a nossa versão é a única verdadeira. O que tem de mentira e baboseira nas redes sociais e em matérias publicadas até agora é brincadeira. Dei várias entrevistas e, na edição, só contam um lado da história. Nós estamos armando um processo gigantesco agora.

Universa: Processo contra quem?

MNJ: Não sei. Eu, na verdade, nem devia estar falando com você. Porque eles judicializaram o caso e agora está em segredo de justiça. Mas vou te falar o que você me perguntou: o lado da CBHP [Confederação Brasileira de Hóquei e Patinação]. Primeiro: a Confederação Brasileira deve ter sido a primeira no Brasil, pioneira, única até agora que se saiba que deliberou em assembleia e autorizou uma criança, então com dez anos, a participar como transgênero de uma modalidade esportiva. Criança! Fomos pioneiros em, como chama? Inclusão. Porque eu acho, e falei isso na assembleia, que o caminho dela já está traçado e não tem volta. Então, a gente não tem que ficar frustrando a criança e os pais adotivos. Muito bem, isso é uma coisa. Aí, o Brasil tinha cinco vagas em cada prova, e a CBHP, por estatuto, tem direito de inscrever a sua seleção. Ninguém pode exigir ser convocado numa delegação da Confederação Brasileira. Há mil critérios sobre isso. As cinco vagas do Brasileiro não dão direito de participar. A seleção é da Confederação e não do atleta.

Universa: O que foi dito é que os cinco primeiros colocados no Brasileiro eram automaticamente classificados para o Sul-Americano.

MNJ: Mentira! Mentira! A palavra automaticamente é mentira! A delegação é da Confederação Brasileira. Vá no nosso site, olhe o estatuto no artigo 69. Escuta, vem cá. Você imagina que eu tenho cinco vagas, e as atletas classificadas --não a Maria Joaquina, qualquer uma-- começam a me agredir por redes sociais, começam a denegrir a CBHP. Elas vão ser convocadas para a delegação da CBHP? Lógico que não!

Universa: Mas não é o quesito esportivo que deve ser o mais importante?

MNJ: Claro! É por isso que nós vemos o nível técnico para decidir. É esportivo, sem dúvida. Ninguém tem classificação automática. Nós poderíamos inscrever os cinco ou dois ou três ou quatro. Tanto é --agora você vai entender melhor-- que em duas provas, dança livre feminino e livre feminino sênior, nós inscrevemos só quatro atletas do Brasileiro e deixamos as últimas duas vagas para meninas que atuam na Europa. Ou seja, foi uma decisão da Confederação Brasileira em formar a sua delegação. É estatutário. Ninguém tem direito de ser convocado automaticamente.

Universa: De qualquer forma, uma atleta que conseguiu o segundo lugar no Brasileiro não teria grandes chances ou mais chances do que outras de ser convocada?

MNJ: Você viu o resultado dela na prova?

Universa: Estou falando do Brasileiro.

MNJ: Você viu o resultado dela na prova do Sul-Americano?

Universa: Eu vi o resultado dela.

MNJ: Ela ficou em 13º! O resultado mostra a questão técnica! O comitê sabe quem é quem. O comitê conhece os nossos patinadores. Tecnicamente, o resultado mostra. A sua pergunta já está respondida.

Universa: O senhor não acha que o fato de ela ter sido liberada para competir só um dia antes e não ter tido oportunidade de reconhecer a pista, tudo isso não pode ter prejudicado o desempenho dela?

MNJ: Outra grande mentira! Baboseira! Ela patinou nessa pista há duas semanas, no Campeonato Brasileiro. Essa pista é perfeita, não escorrega para ninguém. Todo o mundo sabe a dureza da roda, qual é o número da roda, é entrar e patinar. Baboseira! Outra coisa, outra baboseira: por que ela patinou em primeiro? Quando no domingo houve a última decisão [da Justiça], quando a gente autorizou a inscrição dela, porque tem de cumprir a decisão judicial, nós, a Confederação Brasileira, a inscrevemos em último lugar. Isso nem regulamentado é, não está certo isso. Chegou na hora da prova, o diretor do campeonato, que é a maior autoridade no mundo da patinação artística, o italiano Nicola Genchi, falou: "Não, o regulamento diz que ela tem que patinar em primeiro, não em último".

Universa: Por que ela tinha sido inscrita por último?

É o regulamento. Nós havíamos inscrito ela por último porque somos brasileiros e queríamos ajudá-la de alguma forma. O diretor do campeonato, máxima autoridade no mundo em patinação artística, cumpriu o regulamento. Os pais dela sabem disso! Ficam vitimizando, dizendo que a obrigamos a patinar em primeiro para não reconhecer a pista! Isso é mentira!

Universa: Esse processo que vocês estão movendo agora é para impedir que ela continue patinando?

MNJ: Não, não, não. Nós não estamos movendo processo. Espera um pouquinho. Aí que vem o outro lado. Nós tivemos que cumprir uma ação, uma determinação judicial, só que agora a gente não pode se despreparar, porque tem muita coisa envolvida, especialmente nas redes sociais, acusações, mentiras e tudo mais. Para proteger essa criança e as entidades nós vamos até o fim. E eu espero que o direito faça justiça. Isso, em algum momento, vai ter a última instância e uma determinação. Não sou eu quem digo, não tenho opinião pessoal sobre isso. Mas vamos entrar agora com um agravo, com outras considerações. Queremos proteger a entidade e a criança. Que ela não tenha mais frustrações e não seja vítima de pessoas. Vítima. Essa é que é a verdade. Ela não pôde patinar, a Confederação Sul-Americana não autorizou, porque o documento dela é de menino. Então, ela não pode patinar como menina. Isso é norma internacional e não existe precedente no mundo. Muito menos com uma criança! A gente sabe que há atletas transexuais, operadas e tudo mais, atuando em algumas modalidades. Mas criança transgênero sem documento não existe.

Universa: Quando ela tiver o documento alterado não deve haver mais problemas, de acordo com o regulamento da federação?

MNJ: Penso que não. Aí, não. Se tem documento de menina, aí acabou o problema. Deus queira! Só que eu não posso te falar o que eu sei do processo do nome dela, pois está em segredo de justiça. Eu sei da verdade.

Universa: Mas o senhor está dizendo o quê? Que a mudança não será aceita?

MNJ: Eu não estou dizendo isso, estou dizendo que sei como está o processo. Eu conheço os autos do julgamento dessa solicitação feita por parte dos gestores dela. Agora, vocês estão escrevendo só o que eles falam, que já foi aprovada a mudança do nome e que estão aguardando a homologação, algo assim.

Universa: Eu conversei com a defensora pública que está cuidando do caso, Eliana Tavares Paes Lopes, e o que ela disse foi que o MP deu parecer favorável, mas que eles estão aguardando ainda o juiz chamar para uma análise e, depois, a decisão.

MNJ: Exatamente. Mas o juiz já fez essa análise e tudo o mais. Eles já sabem do resultado. Mas tudo bem, isso não vem ao caso aqui. Eu torço pela criança. A gente sabe que ela foi adotada, onde foi, a gente conhece o perfil dos gestores, a gente sabe toda a história. Eu torço por ela, para que dê certo. Na semana passada, houve um caso de uma transgênero nos EUA, um caso muito similar, de uma jovem de 17 anos que se suicidou. Isso está na internet.

Universa: O senhor está dizendo isso por que acha que a exposição pode fazer mal a ela?

MNJ: Meus Deus! Eu tenho dois filhos criados e dois netos. Você é mãe?

Universa: Eu não.

MNJ: Ah, então a minha opinião pessoal não vale nada. O que eu acho sobre isso não tem nada a ver. O que adianta eu achar? Ela tem dois gestores que a adotaram. Eu falei para essa senhora da Defensoria Pública que me ligou que, na minha opinião, ela não tem capacidade de discernir com dez anos. "Não, o senhor está enganado. Tem autos psiquiátricos e psicológicos." Tudo bem, então o fato de eu ter dois filhos criados e dois netos? Os meus conceitos são diferentes dos dela. Mas isso não tem nada a ver com o assunto. O assunto agora é proteger a criança no esporte que ela pratica e as entidades, para que fique claro e determinado o que pode ser feito ou não. Porque não existe precedência no mundo de menino patinar como menina.

Universa: E foi puramente baseada nisso --na ausência de precedentes-- a decisão de vocês?

MNJ: A decisão da CBHP foi acatar a justiça. A decisão da Confederação Sul-Americana é clara: ela não pode patinar porque os documentos dela não são de menina.

Universa: O senhor é presidente de ambas, correto?

MNJ: Por acaso, sou. Mas não sou dono das entidades. A Sul-Americana tem uma assembleia, tem dez países filiados e comitê executivo.