Elas viveram o nazismo: Soldado atirou no peito do meu pai na minha frente
Quando tinha sete anos, a húngara Chana Grünfeld viu seu pai ser assassinado à queima-roupa, com um tiro no peito, por um soldado nazista. Hoje, aos 83 anos, a aposentada, que mora em São Paulo desde 1970, vai se reunir com outras mulheres, judias como ela, para um ritual em lembrança às mortes do Holocausto. Elas vão acender velas em memória aos seus amigos e familiares assassinados.
O encontro do qual Chana (lê-se Rãna) participará faz parte do mundialmente reconhecido Dia da Lembrança do Holocausto, ou Yom Hashoá, em hebraico, que cai na quinta-feira, dia 2. Feriado judeu, ele relembra o fim dos campos de concentração e extermínio e da perseguição nazista aos judeus. A rendição da Alemanha foi no dia 8 de maio de 1945.
Abaixo, contamos a história de Chana e de outras duas mulheres judiais, radicadas brasileiras, que sobreviveram a um dos períodos mais sombrios da história mundial.
"Meu pai foi morto na minha frente. Morei na rua, me escondendo de bombardeios"
Nascida em Budapeste, na Hungria, Chana Grünfeld, 83 anos, recebeu Universa em sua casa para contar sobre a perda do pai. Depois da primeira pergunta sobre suas lembranças da guerra, ela avisa: "Vou responder, mas vou chorar. Lembrar o que aconteceu ainda dói demais", diz, já emocionada.
Em 1942, seu pai, Sandar, funcionário de uma fábrica, foi mandado para um campo de trabalhos forçados na região de Budapeste. Chana mostra uma foto em que ele aparece ao lado de outros homens nesse campo, todos judeus, usando uma braçadeira branca, símbolo da perseguição dos alemães. Um dia, ele fugiu do campo. Visitou a família e depois se escondeu em um matagal próximo à casa. Um vizinho, no entanto, o reconheceu e delatou aos soldados.
Chana lembra de ouvir alguém batendo na porta de sua casa. "Eu, minha mãe e meu dois irmãos corremos para fora. Na frente de casa, vimos meu pai e um soldado nazista apontando uma arma para ele. E ele atirou no peito de meu pai, à queima-roupa. Meu pai caiu, o soldado virou as costas e foi embora."
"No mesmo dia que mataram meu pai, os soldados voltaram à nossa casa e levaram minha mãe para trabalhar em um campo de concentração como cozinheira. Um casal de conhecidos nossos me pegou em casa e me levou para morar com eles. Um tempo depois, eu saí para comprar pão e, na volta, fiquei em meio a um tiroteio. Tive medo de voltar para casa, fiquei desorientada. Corri, corri e peguei um trem. Fui parar no outro lado da cidade."
Budapeste vivia o horror da guerra. "A cidade era uma devastação total. As casas e os prédios estavam destruídos. Por onde eu andava, via corpos estendidos. Via também muitos cavalos mortos e muita gente cortando o cavalo para comer a carne." Com 8 anos, Chana conta ter sofrido violência sexual. "Um senhor, na rua, me pegou no colo e começou a mexer na minha... Eu saí correndo."
"Ficava na rua e em casas de família. Eles me pegavam para cuidar de mim", relembra. "Fiquei em cinco ou seis casas. Uma vez, um casal ficou comigo porque o filho tinha sumido. Mas aí o filho voltou e eles me mandaram para outra família, em uma fazenda no interior da Hungria, onde me lembro de cuidar de gansos."
Chana passava fome. Ficava um ou dois dias sem comer. Conseguia um pão em alguma casa, ia de manhã a lanchonetes para pedir sobras de comida do dia anterior, comia uma sopa que um grupo de ação humanitária distribuía em uma praça.
Em dezembro de 1944, as tropas russas invadiram a Hungria para expulsar o exército nazista, momento histórico conhecido como Cerco de Budapeste. Os bombardeios se tornaram mais intensos. Ao ouvir as explosões, Chana corria para se esconder em vãos nas entradas de prédios. "Uma vez estava na rua, ouvi as bombas explodindo, corri e vi uma igreja. Quando cheguei perto, uma freira fechou a porta. Fiquei do lado de fora esperando o bombardeio acabar."
Da ocupação soviética na Hungria, ela se lembra dos soldados comendo na rua. "Eu e outras crianças ficávamos em volta, olhando os russos comerem. E eles davam pedaços de pão para a gente."
Com o fim da guerra, em maio de 1945, uma organização sionista levou Chana para a França, onde ela estudou por dois anos em um orfanato, junto com outras crianças judias. Depois, foi levada para Israel, onde reencontrou a mãe, que localizou todos os filhos por meio da Cruz Vermelha.
Em 1968, foi morar com o irmão em Nova York. Lá, conheceu o marido, Joseph, um israelense dono de uma fábrica de plásticos no Rio de Janeiro, para onde se mudaram no mesmo ano. Em 1970, se estabeleceu em São Paulo. Tiveram quatro filhos. Ela é viúva há dez anos.
Há 15 anos, voltou com os dois irmãos a Budapeste pela primeira vez depois da guerra. Na sinagoga da cidade, a segunda maior do mundo depois da de Jerusalém, colocaram uma placa em memória do pai. Foram até a antiga casa da família para tentar encontrar algum parente vivo. Três tias suas, casadas e uma delas com um filho, eram vizinhas. "Falamos com quem estava morando lá, mas ninguém tinha conhecimento de nenhum familiar nosso." Ela diz que, até hoje, evita ver filmes e ler livros sobre o Holocausto. "Me faz sofrer demais lembrar o que aconteceu."
"Lembro dos cheiros do campo de concentração: urina e gangrena"
Yona Davidson, 80 anos, nasceu em uma aldeia na Bessarábia, hoje Moldávia. "Acho que foi em 25 de dezembro de 1938. Naquela época, mulheres não eram registradas. Só homens, para saber quando deveriam entrar no exército."
A ex-professora de hebraico tinha apenas um ano e meio quando a aldeia em que vivia foi invadida por nazistas. "Minha família andou por dias na neve até chegar em um campo de concentração na região da Transnístria, na Romênia." No caminho, eles pegavam comida no lixo ou pediam para os aldeões que encontravam. "Meu pai se desesperou com o risco de eu morrer de fome e quis me doar para alguma família, mas um tio meu não deixou. Me amarrou nas costas com panos e continuamos caminhando, seguindo as ordens dos soldados nazistas."
"Ela me contou que, um dia, quis pegar pedaços de polenta de um lixo. Mas um camponês apareceu e deu um tapa nela. Pediu que desse algo em troca da comida no lixo. Ela deu um camafeu azul que usava em um colar de pérolas com três voltas."
Yona e a família ficaram nesse campo por quase quatro anos. Nesse tempo, diz ter duas lembranças envolvendo cheiros. "No lugar que dormíamos no campo, com mais dezenas de pessoas, um homem tinha uma perna gangrenando. Eu dizia: 'Mamãe, que cheiro ruim'. Depois, soube que foi amputada", lembra. "O outro cheiro era de urina. Eu estava com uma tosse muito forte, não tinha remédio, e me davam meu próprio xixi para beber em uma caneca de metal. Os antigos faziam isso. Minha tosse passou".
Em 1944, perto do fim da Guerra, a família de Yona fugiu. Sobre isso, porém, ela não sabe detalhes. Diz apenas que, ou era isso, ou seriam todos mortos, como os milhões de judeus executados no Holocausto. De algum modo, conseguiram se mudar para duas outras aldeias até se estabelecerem em Bucareste, capital da Romênia. Nessa época, lembra de ser perseguida por colegas na rua aos gritos de "judia! Judia!".
Sua família decidiu se mudar para Israel em 1945. Yona ficou lá até 1957. Completou 18 anos, se alistou no exército israelense, e veio passar uma temporada no Brasil, em visita à irmã. Dois meses depois, chegaram o pai e a mãe. "Eles já tinham tudo planejado para ficarmos no Brasil. Chorei muito, não queria viver aqui. Mas minha mãe disse que não suportaria me ver indo para uma guerra, caso me chamassem."
Em 2014, Yona e o marido, Lucio, visitaram o Museu Memorial do Holocausto, em Washington. Ela viu uma foto que a emocionou: um grupo de judeus da Bessarábia a caminho da Transnístria. "Vi uma mulher que me pareceu familiar. Pedi uma cópia daquela foto para a administração. Eu a mostrei à minha mãe. E olha só: era a irmã do meu pai na imagem, uma mulher que ela nunca mais encontrou."
Também no museu, Yona encontrou um livro sobre o campo de concentração da região em que se falava sobre a prática dos alemães de soltar cachorros em cima dos judeus. "Eu tenho paúra de cachorro e perguntei para minha mãe se aquilo havia acontecido no campo em que vivemos. Ela falou que sim. Em uma noite, os soldados soltaram dobermanns para nos morder. Minha mãe contou que uma criança foi estraçalhada."
"Sua mãe morreu. Se você não ficar quieta, vamos todos morrer também"
Ariella Pardo, 77 anos, segura um exemplar italiano do livro "Minha Luta", escrito por Adolf Hitler. "Está tudo aqui. Ele ensina como perseguir e matar judeus", diz. A edição foi um presente do irmão de Ariella e veio com uma carta, que ela começa a ler: "Aprender sobre o mal para não permitir que se repita."
A família dela morava na cidade de Bolonha, na Itália. Um dia, quando tinha 3 anos, voltavam para casa e, antes de passar pela porta, ainda no jardim, um vizinho correu para avisar seu pai que um caminhão da Gestapo, a polícia nazista, havia aparecido naquela tarde procurando por ele. "O caminhão vai voltar", alertou o vizinho. A família fugiu com a roupa do corpo.
"Começamos a caminhar e encontramos outros judeus. Queríamos atravessar a fronteira da Suíça. Meu pai já tinha um plano de fuga. Caminhamos por dias, dormíamos em campos, no mato", lembra. "Na primeira manhã, olhei para as minhas mãos sujas e pedi para tomar banho. Minha mãe disse que não tinha água nem para beber."
As caminhadas eram sempre à noite para se esconderem dos soldados nazistas. Em uma dessas peregrinações, a mãe de Ariella caiu em um buraco e se perdeu na neve. "Dei um berro de desespero. Me taparam a boca com muita força. Disseram: 'Sua mãe morreu, fique quieta se não morremos todos'. Entendi e me calei." Ariella felizmente reencontrou a mãe na fronteira da Suíça. Ela havia sido resgatada por outra pessoa do grupo e ficou para trás. "Minha mãe deu um anel de ouro a um contrabandista e pediu que ele me carregasse, porque meus pais não tinham mais forças para me levar no colo."
Ariella se lembra do brilho de bombas explodindo no céu. Do frio, da neve que era mais alta do que ela e do casaco branco de pelo de coelho que usava. Ao chegar na Suíça, passaram a fronteira e foram encaminhados para um campo de refugiados judeus. Homens ficavam de um lado, mulheres, de outro, e crianças, de outro. Ela via os familiares em visitas esporádicas. "Às vezes, via meu pai de longe trabalhando em alguma plantação. Ficava sentada só olhando. Ele fazia sinal para ficar em silêncio, tinha muito medo de fazer qualquer coisa errada e ser expulso do campo de refugiados."
Menos de um ano depois, a família foi enviada para a cidade de Lugano, ainda na Suíça, quando o pai foi nomeado instrutor de estudantes refugiados.
Chegou o dia em que a guerra acabou, e eles voltaram para a Bolonha. Mas os Pardo tinham sido dados como mortos, e a prefeitura cedeu a casa deles para outra família. O governo local ordenou que todos vivessem naquele espaço até que ficasse comprovado quem eram os donos da propriedade, o que o pai de Ariella conseguiu fazer um ano depois.
Em 1960, ela se casou, na Itália, com Marco Segre, um judeu cuja família havia fugido para o Brasil. Vieram para cá no mesmo ano, tiveram quatro filhos. O marido morreu há dois anos.
Ariella volta ao seu acervo e pega mais dois livros contando a história dos judeus refugiados na Suíça. Um outro, de geografia, mostrando em um mapa o quanto a família caminhou quando fugiram da Gestapo. "Tenho muitos livros sobre nazismo e Holocausto em casa. Leio muito, até hoje. Precisamos falar sobre o que houve. Esquecer a história é esquecer onde a humanidade pode chegar."
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