Glamour Garcia: de criança trans com medo da morte à aposta da novela das 9
Prestes a viver um papel importante na próxima novela das 9, "A Dona do Pedaço", que estreia no dia 20 de maio, a atriz Daniela Garcia, que gosta de ser chamada pelo nome artístico Glamour Garcia, aposta que sua personagem, Britney, vai cair nas graças dos brasileiros. Na trama, a jovem se assume transexual para a família aos 22 anos e, dela, recebe apoio e amor. O biscoitinho do café é que Glamour fará parte do elenco engraçado da novela, em que também atuam Marco Nanini e Rosi Campos.
Nesta entrevista exclusiva, Glamour, que tem 30 anos, é formada em artes cênicas na UEL (Universidade Estadual de Londrina) e artes do corpo na PUC-SP, relembra como se defendeu das agressões na infância ("chegava no colégio e colocava uma minissaia"), os amores (dois casamentos e um namorado, atualmente), abusos e trabalhos mais marcantes; no começo deste ano, ela foi convidada a trabalhar em um filme de Zé Celso.
Seu primeiro papel na televisão é o de uma mulher trans. Incomoda não ter sido escolhida para interpretar uma mulher cisgênero?
Não. Mas se fosse há alguns anos, talvez eu tivesse me incomodado. Acho importante demais que uma atriz trans faça o papel de mulher trans por uma questão de representatividade. Além disso, é uma oportunidade de ouro para falarmos sobre transexualidade na TV. Quando recebi a notícia, comecei a chorar. Minha mãe é psiquiatra, estava em consulta, e eu não parei de ligar até que ela atendesse. Ela foi a única pessoa que me apoiou e disse: 'Vai ser atriz'.
Quais as similaridades entre a história da Britney e a sua?
Ela vai sofrer um pouco, mas será acolhida pela família. Demorou, mas eu também fui acolhida pela minha. Meu pai, de início, não entendia. Um dia, ele chegou em casa e me deu um "Power Ranger" vermelho, que era o boneco menino. Fiquei muito brava e até o xinguei. Ele não disse nada. No dia seguinte, voltou na loja e trocou pelo cor-de-rosa, que era o de menina. Quando eu tinha uns 20 anos, ele me perguntou, de forma natural, se eu não tinha vontade de fazer a cirurgia de redesignação sexual. Fiquei tão em choque que nem respondi.
Em quem você se espelhou para entender que era menina?
Eu sempre soube que era. Quando você cresce com medo de ser morta precisa saber o motivo. Fui muito agredida na cidade em que eu morava (Marília, no interior de São Paulo) quando era criança e adolescente. E a Madonna foi uma grande referência para mim, apesar de ser cisgênero.
As agressões faziam você paralisar?
Não. Eu sempre enfrentei. Na aula de Educação Física, por exemplo, os professores separavam os alunos: as meninas faziam balé e os meninos, algum esporte com bola. Eu fugia para o balé; Deus me livre de ficar com aquele monte de homem. Só que a escola não permitia. Então, um dia, a professora de dança foi até a minha casa pedir ao meu pai autorização para que eu frequentasse suas aulas. Ele não deixou, mas eu continuei fugindo. Sorte que a professora era maravilhosa e me deixava fazer a aula escondida. Eu levava uma muda de roupa na bolsa para a escola. Quando entrava, ia até o banheiro e me trocava: colocava uma blusinha e uma saia minúscula. Rezava e saía.
Sua mãe é psiquiatra. Em que medida ela ajudou quando você decidiu começar a transição?
Havia pouca informação na área dela na época, 13 anos atrás, mas ela começou a estudar para entender. Minha mãe nunca me desamparou. Comecei a transição me automedicando com injeções de anticoncepcional. Quando ela descobriu, não ficou brava; pegou na minha mão e me levou a um endocrinologista, que passou um tratamento hormonal saudável. Ela me acompanhava em todas as consultas, assim como na terapia. Sem ela eu não estaria viva hoje.
Você tem um namorado e já foi casada duas vezes. Quais situações difíceis teve de enfrentar durante os relacionamentos?
Nunca me senti bem me relacionando com alguém. Normalmente, era escondido, não existia isso de assumir um namoro comigo. Eu sofria muito porque me apaixonava e tinha que esconder. Já fui muito usada, já fui abusada sexualmente, mas prefiro não falar sobre isso. Tive dois relacionamentos públicos, ambos bem complexos. Com meu namorado atual, finalmente, tenho um relacionamento comum. Estou vivendo um começo de namoro que é uma delícia.
Segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), 56% da população transgênero não completa o Ensino Fundamental. Você fez duas faculdades. Como conseguiu fugir da estatística?
Tive muita sorte. Minha mãe quis me entender, meu pai não me reprimiu e os dois sempre incentivaram que eu estudasse. Quando terminei o Ensino Médio, passei na UEL (Universidade Estadual de Londrina) e me mudei para o Paraná. Foi muito difícil, porque eu morava no interior de São Paulo, com meus pais, e tive que me virar. Depois, vim para São Paulo cursar artes do corpo na PUC.
Na faculdade, houve algum episódio violento?
Sim. Estava no refeitório da UEL e um aluno me xingou de "aberração" e "vergonha da família". Eu não ouvi, mas alguns colegas, sim, e houve uma mobilização. No dia seguinte, os alunos pararam, ninguém foi para a aula. Nós enchemos o pátio com música e discursos sobre o direito que pessoas transexuais têm de estudar. Foi lindo. Ali eu entendi que não podia desistir.
Em 2018, três transexuais foram eleitos para cargos no Legislativo. Pensa em entrar para a política?
Não. Já fui muito envolvida com a militância e sou amiga de várias pessoas LGBT que estão na política agora. Quero contribuir com o meu trabalho de atriz e sei que essas pessoas vão nos representar bem. O Jean Wyllys, por exemplo, é meu amigo íntimo. Quando ele soube da novela, ligou e comemorou comigo.
No mundo das artes cênicas, quem mais ensinou coisas para você até hoje?
O Zé Celso. Participei de um filme dele, "Horácio", que conta a história de um contrabandista de 80 anos. Ele me ensinou a ter irreverência e estar aberta para improvisar, como ele sempre está. É essa lição que eu quero levar para essa primeira personagem na TV aberta e para todas as outras que eu, um dia, vou interpretar.
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