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Rosto pintado de preto no Faustão: por que isso virou polêmica na web?

Solange Almeida escureceu pele e usou prótese no nariz para interpretar Whitney Houston em "Domingão do Faustão" - Reprodução/Globo
Solange Almeida escureceu pele e usou prótese no nariz para interpretar Whitney Houston em "Domingão do Faustão" Imagem: Reprodução/Globo

Natália Eiras

Da Universa

21/05/2019 13h49

A cantora Solange Almeida surgiu, neste domingo (19), no palco do "Domingão do Faustão", caracterizada como Whitney Houston no quadro "Show dos Famosos". A performance não seria um problema se a artista não estivesse com a pele escurecida com maquiagem e prótese para aumentar o nariz. O público apontou, na redes sociais, que Sol estaria fazendo "blackface", antiga prática em que atores brancos usavam carvão e outros elementos para reproduzir traços de afro-descendentes. Apesar de parecer uma "inofensiva" homenagem para alguns, escurecer a pele para interpretar uma personagem é ofensivo para a população negra. E o porquê está na história.

Como surgiu o blackface?

O blackface surgiu no século 19. Como negros não podiam participar de peças de teatro, atores brancos se maquiavam para interpretar personagens afro-descendentes. A caracterização incluía traços exagerados, lábios grossos e cabelos indomáveis --e, normalmente, eram papéis que ridicularizavam o negro. "É uma prática racista, porque estereotipa pessoas negras. O 'blackface' era usado em personagens como a empregada sedutora, o funcionário negro malvado. Sobretudo, no teatro e no cinema", diz à Universa o antropólogo Helio Menezes, pesquisador do Núcleo de Estudos de Marcadores Sociais da Diferença da USP (Universidade de São Paulo).

De acordo com o especialista, o uso desse tipo de maquiagem reforça a opressão e o racismo estrutural, uma vez que transforma características estéticas de uma raça como algo engraçado, pitoresco. "Era um desrespeito à imagem do negro como ser humano", fala o estudante e ativista Jackson Augusto, membro dos coletivos AfroPython e do Movimento Negro Evangélico, de Recife (PE).

O personagem mais emblemático que usava a "máscara" do "blackface" era Jim Crow, interpretado por Thomas D. Rice --um comediante norte-americano (1808 - 1860). Rice foi quem popularizou a maquiagem. Nas apresentações, ele encenava o que era chamado de "típico negro": Jim andava em trapos, era preguiçoso, burro e vivia fazendo trapalhadas.

Na época, a população negra não se via representada em jornais e outros veículos de comunicação. Ela não costumava ver questões da comunidade de afro-descendentes nos jornais nem no cinema. Porém, quando tinha algum tipo de representação na cultura, se deparava com figuras como Jim Crow, que a humilhava. "Os negros eram tratados como animais, como pessoas que não tinham vez", afirma Augusto.

A escritora e militante Stephanie Ribeiro, de São Paulo (SP), diz que, no século 19 e até mesmo hoje em dia, essa representação da pessoa negra é tratada com naturalidade. "Muita gente ainda não vê problema no 'blackface', porque no Brasil foi naturalizado em figuras como a nega maluca, que é uma representação racista que é tratada como normal, como fantasia", fala a ativista. O assunto, no entanto, é discutido nos movimentos negros há muito tempo. "Nos anos 1940, já vemos críticas fortes em relação ao uso da maquiagem para mimetizar a identidade do povo negro", diz Hélio Menezes. A discussão ganhou mais notoriedade quando começou a ser tratada também pela grande mídia.

Mas por que isso ofende?

Stephanie diz que o "blackface" ofende porque transforma características humanas em piada. "A nossa cor de pele, o jeito que falamos, não são material para humor", afirma a escritora. "Esse tipo de narrativa teatral transforma a pessoa negra em um objeto, esquecemos que ela é um ser humano".

O que incomoda a população negra é ver empresas do alcance da TV Globo insistirem no erro, segundo Stephanie. A Globo teve outros casos de que um ator com maquiagem para imitar a pele negra causaram polêmica. Com ares de pedinte, Adelaide, personagem do programa "Zorra Total" interpretada por Rodrigo Santanna, foi alvo de ação civil pública em 2012 por ser considerada uma representação racista da população negra. O próprio "Domingão do Faustão" já passou por isso: em 2017, o ator Nelson Freitas também fez "blackface" para homenagear o cantor James Brown.

O 'blackface' também prejudica artistas negros de maneira prática. "Ele retira a possibilidade de contratação de afro-descendentes para interpretar artistas negros. Você continua excluindo e não dando espaço para atores, cantores e bailarinos que já são preteridos por causa do racismo estrutural", afirma Hélio Menezes.

Como homenagear artistas negros sem ofender?

"Não pintando o rosto de preto, não fingindo que é negro", fala Menezes. No caso do quadro Show de Famosos, do "Domingão do Faustão", Stephanie Ribeiro diz que seria preciso repensar como é feita a representação desses artistas. "É realmente necessário simular a identidade racial do homenageado? Seria igualmente ofensivo se fosse uma pessoa tentando imitar características de asiáticos."

Assim, uma pessoa branca poderia se vestir e cantar como Whitney Houston ou James Brown sem, necessariamente, usar maquiagem para escurecer a pele ou próteses para aumentar o nariz. Se a aparência for imprescindível, talvez a solução seria respeitar as identidades raciais. "Com certeza temos pessoas negras que poderiam homenagear esses cantores", fala o militante de Recife (PE). "Não existe a menor dificuldade em encontrar neste país alguém negro que consiga participar desse tipo de competição. Há pretos famosos que são talentosos e que podem muito bem trazer a cultura negra para a TV, sem ofender."

Então atores negros só podem interpretar artistas da mesma cor? Jackson Augusto reforça que o fato de um artista branco com a pele escura ocupar o lugar de um intérprete negro ser um problema tem muito a ver com a trajetória da sociedade. "Historicamente, não tivemos tanto espaço quanto colegas de trabalho de pele mais clara". Por isso, uma ator negro clarear a pele para interpretar um branco não teria o mesmo peso que o "blackface". "Brancos não foram escravizados, colocados dentro de jaulas", afirma.