Mãe de Priscila e Vitor Belfort: "Minha filha morre todo dia há 15 anos"
Priscila Belfort, filha de Jovita e irmã do lutador de MMA Vitor Belfort, desapareceu em 2004, aos 29 anos, após sair do trabalho para almoçar, no centro do Rio de Janeiro. Ela tinha horror a trovão. Por isso, até hoje, quando chove e troveja, a mãe pensa: "Será que minha filha está com medo?"
Pergunta que a leva à outra: "Será que ela está viva depois de tanto tempo?". Vitor acha que não. A mãe se questiona, envolta no turbilhão de hipóteses do que poderia ter acontecido, e ora aceita que a filha morreu, ora espera encontrá-la "magra e doente", vivendo como indigente. "Por causa da dúvida, uma filha desaparecida é pior do que uma filha morta".
Desde janeiro, Jovita chefia a coordenadoria de desaparecidos, ligada à Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro. Menos por causa da sua formação do que pelo que aprendeu, tristemente, com a vida. Graduada em geografia, ela deixou a carreira de professora da educação básica depois do sumiço da filha e passou a militar pelo desenvolvimento de políticas públicas para desaparecidos. Sua primeira vitória, se é que esse termo pode ser atrelado a um mãe com a história de Jovita, foi a criação de uma delegacia específica, inaugurada em janeiro deste ano, no Rio.
Leia a entrevista de Jovita à Universa:
Uma das linhas de investigação da polícia sobre o desaparecimento de Priscila apontava para a possibilidade de ela ter sido sequestrada, levada para uma favela e morta. Essa versão não foi comprovada, e o caso segue em aberto. O que a senhora acha que aconteceu?
Pensei de tudo nesses 15 anos. Que ela está morta, viva, que perdeu a memória, que vou encontrá-la magra e doente, que pode estar morando na rua, sendo chutada por alguém. O Vitor acha que ela morreu, se não, teria sido encontrada. Eu não tenho essa certeza. Quer dizer, às vezes, penso nisso. Mas abro essa porta rapidinho e digo para mim mesma que ela está viva e que vou continuar procurando por ela.
Quais são os piores medos da senhora?
Por exemplo, quando chove e tem trovão. Priscila tinha horror a trovão. Fico pensando: 'Será que ela está com medo?' E começo a me perguntar se, depois de tanto tempo, ela está viva. Ela também tinha cólicas menstruais terríveis, tomava remédio sempre. Será que conseguiu o remédio? Já imaginou o que é isso martelando na sua cabeça há 15 anos? É todo dia. Todo dia (Jovita se emociona).
A senhora disse certa vez que "uma filha desaparecida é pior do que uma filha morta". Continua com essa convicção?
Sim. A morte de um filho é tão dolorida que nem tem nome. No caso do desaparecido, é uma morte diária. Todos os dias penso que ela pode estar viva ou não. Além disso, a cabeça e o coração são tomados pelo que pode estar acontecendo: será que ela está dormindo em um papelão ou em uma cama? Está comendo? Bebendo? Está sendo bem cuidada? Será que foi violentada? Fui jogada num poço e estou descendo nele sem chegar ao fim.
Qual foi um bom conselho que a senhora recebeu e que poderia dar para mães que passam pela mesma dor?
A mãe vira um pitbull, quer ir em todos os lugares que o filho ia, falar com as pessoas, sair por aí distribuindo foto, exigir que a polícia resolva. Digo que elas devem se manter bem de saúde e com a cabeça sã, claro, na medida do que conseguem. Os filhos desaparecidos só estão vivos porque as mães estão vivas. Se a gente morrer, eles morrem também. Meu coração está sempre apertado de saudade, pavor e tristeza. Tem cura? Não. Tem que arranjar um jeito de conviver com isso. Tem dias que eu consigo, outros não. Aí eu me ajoelho e rezo.
O desaparecimento da Priscila mexeu de que forma com a vida das outras pessoas da sua família?
Como a mãe não pensa em outra coisa, os outros filhos não recebem a mesma atenção de antes do desaparecimento. Muitos casais se separam porque a tristeza domina tudo. Eu já era separada quando a Priscila desapareceu. Mas o Vitor sentiu. Levei um choque quando ele me disse que a coisa que mais doía na vida era ser órfão de pai e mãe vivos.
A senhora evita lugares ou pessoas para não sofrer mais?
Não, pelo contrário. As amigas da Priscila são minhas amigas agora. Nos encontramos todos os anos, elas me ligam, sou convidada para os casamentos. O que evito são pessoas fúteis, que só pensam em coisas como viagens, moda. Que não pensam no sofrimento dos outros. Não tenho mais paciência para elas. Não uso maquiagem, engordei 40 quilos, mas a aparência é uma coisa que não me importa mais.
O que a senhora faz na Coordenação de Desaparecidos?
Tenho viajado para cidades do Rio para saber o que as prefeituras fazem em relação aos desaparecidos. Temos um projeto de capacitação para professores e diretores de escolas. Eles seriam treinados para reconhecer quando uma criança está sendo levada por um estranho e ensiná-las a se proteger de situações como essa. Também temos conversas com o Ministério Público para pensar em políticas públicas.
Quais dados sobre desaparecidos a senhora descobriu em seu trabalho e que são pouco conhecidos?
Em relação ao Rio, 13% dos desaparecidos têm entre 12 e 17 anos e somem porque fugiram de alguma violência dentro de casa. Ou eram explorados sexualmente ou apanhavam muito. Mas o que mais me choca é a chamada "adoção à brasileira", o tráfico de bebês. As crianças são raptadas recém-nascidas, vendidas para adoção ou então, quando crescem, viram escravas sexuais. Não tenho números, mas ouço muitos casos desses.
Mães são sempre a maioria na busca pelos filhos?
Sim. Diria que, para cada 30 mães, há dois pais. Há homens nessa luta, mas são exceção. O que vejo é que o desaparecimento não é importante para ninguém, só para a mãe.
Há 82 mil desaparecidos por ano no Brasil, que significa nove pessoas por hora. Onde estamos errando mais?
Deixando de divulgar fotos de desaparecidos na TV e em lugares como o aeroporto. Além disso, só há seis delegacias especializadas em desaparecidos no país. É muito pouco.
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