"Essa vai dar trabalho": brincar com a sexualidade da criança não tem graça
Muitos adultos, geralmente para elogiar os filhos alheios, lançam frases como "Essa(e) vai dar trabalho, hein?!". A frase pode se referir a várias situações: quando a criança está bem arrumada/bonita, dançando, brincando com alguém do sexo oposto, é vaidosa, diz alguma coisa engraçada sobre namorar ou sobre o amor. Ou, ainda, servem para enaltecer alguma característica física de destaque, como a cor dos olhos ou os cabelos. Só que, de acordo com especialistas, expressões como essas não deveriam ser ditas, pois nada descrevem a respeito das qualidades de uma criança e, na maior parte das vezes, são baseadas apenas em estereótipos estéticos, como se isso estivesse intimamente relacionado ao futuro amoroso e/ou sexual dela.
De acordo com Paula Mendes, terapeuta de família e casal e educadora parental do Eludicar Centro Pediátrico, em São Paulo (SP)., é importante saber que as crianças acreditam no que escutam a respeito de si mesmas, principalmente as pequenas. "Se uma menina ouve constantemente que 'vai dar trabalho', entenderá que é uma criança que dá trabalho, seja lá o que isso significa na cabeça dela. Crianças não têm maturidade emocional e cognitiva para entender o trocadilho feito pelos adultos a respeito da forma como se comportam ou sobre sua aparência física", diz.
Portanto, a psicóloga Cinthia Santiago, especialista em atendimentos de crianças, adolescentes e famílias, do Rio de Janeiro (RJ), reforça que, quando nos referimos a uma criança na frente dela, é papel do adulto falar de forma clara para que ela entenda o que está sendo dito a seu respeito. "A criança pode criar expectativas em relação a algo relacionado ao seu comportamento que nem ela sabe o que é. E, ao ouvir constantemente esse tipo de comentário, é possível que em algum momento ela pergunte o significado. Cabe aos pais ou responsáveis explicar de maneira clara o sentido da expressão", diz.
O que você diz acrescenta algo de bom?
Para Monica Pessanha, psicopedagoga e psicanalista infantil e de adolescentes, de São Paulo (SP), falar sobre uma criança tem impacto direto na autoestima dela. Por isso, os adultos precisam redobrar a atenção sobre o que dizem para os próprios filhos e para os filhos dos outros. "Em se tratando de uma frase jocosa, é sempre bom pensar: ao enunciá-la, qual é a minha intenção por trás dela? O que ela acrescenta de bom para a pessoa que a recebe? Se a resposta tiver algo de negativo, é melhor não dizê-la. Funciona 100% das vezes? Não. Mas policiamos mais em nossas observações", explica.
Além disso, frases e brincadeiras do tipo são uma forma equivocada de especular antecipadamente sobre a sexualidade infantil. "A sexualidade se constitui a partir de vivências que se dão ao longo de todo o desenvolvimento da criança. A cor dos olhos, a forma de se portar ou o jeito de falar não são coisas sexualizadas, quem coloca a conotação sexual são os adultos. Crianças não dançam para provocar nem fazem olhares doces para manipular. Elas agem no mundo experimentando várias formas de ser", explica Paula.
A psicóloga clínica Cynthia Wood, de São Paulo (SP), lembra que em muitas situações as crianças estão apenas agindo de maneira inocente ou reproduzindo comportamentos assistidos. "Isso faz parte do aprendizado de expressões da personalidade da criança e não tem relação alguma com seu desenvolvimento sexual, portanto, esses comentários são completamente inadequados", afirma. "E, se pararmos para refletir, o que significa 'dar trabalho'? Que tanto menina quanto o menino vão transar com várias pessoas? Ou que eles têm o dever de arrasar corações? E se isso não acontecer? É uma frase que, mesmo parecendo banal ou inocente, esconde um tom de reprovação, principalmente para elas", fala Joselene L. Alvim, psicóloga clínica de Presidente Prudente (SP) e especialista em Neuropsicologia pelo setor de Neurologia do HCFMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).
Expressões camuflam machismo
Não dá para ignorar o viés machista da questão e seus desdobramentos. Por exemplo, certas frases são ditas muito mais para pais de meninas do que para pais de meninos, como se eles devessem se preocupar desde cedo com a sexualidade ou vida amorosa da filha. "Essa forma de se referir à menina diante do pai exemplifica a lógica da nossa sociedade de que as mulheres 'pertencem' aos homens, sejam seus pais ou seus parceiros", diz Paula.
Para as meninas, há um risco enorme de ações assim prejudicarem o desenvolvimento. Na nossa sociedade, que já é machista, elas podem crescer achando que os atributos aos quais todos se referiram ao longo da sua vida são suficientes para resolver suas questões amorosas. "Talvez seja difícil para uma garota que ouviu a infância inteira que teria vários namorados e que daria muito trabalho quando crescesse se reconhecer em outras qualidades ou se perceber com outros olhos", indica Paula. O oposto também é verdadeiro: ela pode se retrair, com medo do que esse "dar trabalho" possa significar. "Os estereótipos podem reprimir algumas meninas ao considerarem, por exemplo, que os meninos podem e devem explorar o mundo, enquanto as meninas devem se comportar", salienta Joselene.
Para Cynthia, esse posicionamento tem o objetivo, mesmo que inconsciente, de limitar a atuação e a expressão femininas dentro de um círculo de controle. "Como a menina não compreende o porquê dessa intervenção constante, ela pode desenvolver sentimentos desnecessários de culpa e ansiedade, com possíveis desdobramentos futuros", alerta. Inibições, medo de expor ideias por receio de ser mal interpretada e dificuldades nas relações interpessoais na fase adulta são algumas das possíveis consequências negativas.
Já alguns meninos que convivem com frases taxativas podem crescer se achando "os maiorais", aqueles que todas desejam. Isso pode afetar a forma como eles se relacionam com os outros e também consigo mesmos. No entanto, alguns comentários direcionados aos garotos têm um fundo homofóbico --quem não tem potencial para "dar trabalho" é afeminado-- e buscam direcionar uma sexualidade que ainda nem existe. "Tudo aquilo que tem um fundo machista acaba cobrando um preço dos homens, também", fala Monica. "No caso de um menino que se expressa mais, gosta de dançar e cantar e é bastante vaidoso, principalmente nas combinações de roupa, a cobrança com a sexualidade através de brincadeiras de mau gosto é maior", alerta.
O termo "dar trabalho" sugere uma certa inabilidade --e altas doses de ansiedade-- dos adultos em lidar com a sexualidade dos filhos. "Querendo ou não, o sexo ainda é um assunto tabu. Embora hoje os pais contem com recursos para iniciar uma conversa, como livros que abordem o assunto de forma clara, muitos ainda não se sentem preparados para falar sobre o tema. Isso acontece porque muitos acreditam que conversar poderia gerar ainda mais curiosidade na criança, o que não é verdade", conta Monica.
Outras características merecem destaque
Todo e qualquer elogio que esteja especificamente atrelado às características da criança sobre as quais ela não tem controle deveriam ser limados do vocabulário dos adultos, como "você parece uma princesa/um príncipe", pelo potencial culturalmente repressivo. Da mesma forma, é preciso fugir de incentivos a comportamentos adultizados, como pedir para beijar o "namoradinho" na escola ou contar para os avós sobre o "namoro". "É necessário e urgente parar de enfatizar a sexualidade desde tão cedo. Nossas crianças já tem contato com muitas coisas antes da hora através da internet e não precisam dos adultos ao redor validando essa pressa para que a infância acabe", pondera Paula.
Esse período da vida é importantíssimo para os pequenos se voltarem para o mundo com um olhar pesquisador, curioso, e testá-lo. Estigmatizar e rotular as crianças, na opinião de Deborah Moss, neuropsicóloga especialista em comportamento infantil e mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela USP (Universidade de São Paulo), acaba restringindo possibilidades e a própria construção da identidade. Assim, algumas frases tida como elogiosas podem inflar o ego dos pais, não deveriam ser ditas --e, quando ouvidas pelos pais, esses deveriam tentar minimizar sua influência, chamando a atenção para outros pontos fortes da criança. "É preciso pensar de forma global, valorizando qualidades como inteligência, esperteza, rapidez de raciocínio, sociabilidade", diz Deborah. No caso de terceiros, conhecer melhor a criança e interagir com ela também pode ajudar a enriquecer o repertório de características a elogiar.
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