O que está por trás da mudança de estilo dos principais funkeiros do país
Dentro de uma boate, Kevinho coloca uma vitrola para tocar e, em seguida, surge no centro da tela, rodeado por um grupo de dançarinos. De imediato, o que prende a atenção é a jaqueta ultracolorida que o cantor veste por cima de uma camiseta e calça pretas. A peça, estampada com elementos da Grécia Antiga, faz parte da coleção de primavera 2019 da grife italiana Versace -- um modelo similar está à venda no Brasil por cerca de 13 mil reais. Na cena seguinte do clipe de "Facilita", que é o mais recente lançamento solo do artista, ele aparece com um moletom com estampa barroca, também da Versace.
O visual fashionista e bem editado pouco se assemelha ao que Kevinho exibia em "Olha A Explosão", seu primeiro hit, lá em 2016, em que aparece com uma bermuda de tactel e muitos acessórios dourados. De lá para cá, nem só a etiqueta das roupas mudou: o funkeiro assinou contrato milionário com a gravadora Warner, deixou o título de MC para trás e se consolidou como um verdadeiro fenômeno da música pop brasileira, rompendo as fronteiras do funk e se aventurando também por gêneros como o sertanejo universitário. Hoje, é difícil superar suas marcas: dos dez clipes mais vistos do canal da produtora KondZilla, Kevinho está em quatro. Sozinho, o clipe de "Olha A Explosão" tem mais de 900 milhões de visualizações.
O upgrade em seu estilo tem nome e sobrenome (dois, aliás): Léo Bronks e Emerson Timba. Desde meados de 2017, tudo o que Kevinho veste nos clipes e aparições públicas passa pelo crivo da dupla de stylists por trás da empresa Single Style. "Kevinho tem como referências Maluma e J Balvin. O que a gente faz é adaptar esses estilos à nossa realidade, com outro clima, outro acesso às grifes", conta Bronks. No guarda-roupa do cantor, ganham espaço camisas estampadas, jaquetas esportivas coloridas e sapatos de grife, como mules Gucci ou tênis Balenciaga.
Outro exemplo da veia fashion aflorada de Kevinho, o clipe de "É Rave Que Fala" mostra o artista em conjuntos de moletom de cores vibrantes e um blazer florido. "Em um clipe, a gente tem muito mais liberdade com as roupas do que na TV, que proíbe qualquer peça com logos", explica Bronks, que, ao lado do sócio, é responsável também pelos looks dos MCs MM, Hollywood e Kekel.
Esse último, aliás, é outro a passar por uma transformação nítida desde seu primeiro hit. "O primeiro clipe que fizemos com o Kekel foi 'Pra Te Esquecer', em 2017, e na época ele foi bem resistente, mas com a repercussão que o vídeo teve, entendeu que a mudança era necessária", diz o stylist. No clipe, o MC usa um conjunto de short e jaqueta jeans rosa claro, bem diferente do visual simples do clipe de "Partiu", de 2016, seu primeiro grande hit e também o primeiro clipe publicado pela KondZilla. Já no vídeo de "Amor de Verdade", sucesso em parceria com MC Rita, Kekel vive o auge de seu novo estilo -- a produção com jaqueta dos Yankees e óculos de sol Versace, mais elaborada que a de Rita, rouba a cena. Em seu guarda-roupa, as estampas agora são elemento-chave -- da clássica xadrez até as mais extravagantes.
Mudanças vêm com o sucesso e o dinheiro. E têm influências americanas
"A mudança de estilo do Kekel era o que o momento pedia. Quando você atinge um certo patamar de sucesso e poder aquisitivo, sente um dever de se dedicar mais ao visual", explica Bronks. Hoje é como se os artistas assumissem personas especialmente confeccionadas para as suas aparições públicas. "De um lado estão o Keldson e o Kevin, pessoas comuns, e de outro, estão Kekel e Kevinho, artistas. No dia a dia, pode ser que o Kekel ainda use Oakley [como fazia nos clipes do começo da carreira]. A diferença é que agora ele separa esses dois momentos", define o stylist.
As referências de Bronks e Timba vêm do rap e do trap dos Estados Unidos, e nomes como Tyler The Creator, Lil Uzi Vert, Travis Scott e o grupo Migos. Para compreender os desejos de agora, a dupla também faz o exercício de olhar para trás, resgatando referências como o estilo swag, característico do universo do hip hop no começo dos anos 2000 -- pense na imagem de 50 Cent no vídeo de "P.I.M.P" em 2003, ou Nelly em "Dilemma", de 2002.
Outra inspiração é o icônico alfaiate Dapper Dan, que, direto do bairro do Harlem, em Nova York, revolucionou a moda durante a década de 1980. Na época, ele copiava os monogramas de grandes marcas, como Gucci e Louis Vuitton, e os aplicava em suas próprias criações, extravagantes e em nada parecidas com o que se fazia e que se usava nas ruas até então. Não demorou para que as peças caíssem nas graças dos rappers e DJs da cidade, que viram nele um caminho para um visual único que fosse acessível -- não só financeiramente. Seu público, majoritariamente negro, não era bem-vindo nas lojas das grifes, ainda que tivesse dinheiro para comprar os produtos. No começo dos anos 1990, por razões legais, o alfaiate se viu obrigado a fechar seu ateliê. Em 2018, veio o retorno triunfal ao mundo da alta moda: Dan foi chamado pela Gucci para uma parceria, além de receber ajuda para reabrir seu endereço no Harlem. "Os pretos e pobres não tinham acesso às roupas de grife, e Dapper Dan resolveu transformar esse cenário", resume Léo Bronks.
Longe do estigma
Para Camila Franco Monteiro, doutoranda em Música e Mídia na Inglaterra, a busca por um novo estilo também tem a ver com querer se distanciar do estigma que o funk pode trazer. Vestir grifes, apostar em looks mais parecidos com o de astros internacionais e até colaborar com nomes de outro gêneros musicais, para a pesquisadora, são reflexos disso. "É uma mistura de representar o lugar de onde veio e de mostrar que não é mais pobre. Mas, ao mesmo tempo, é também uma forma de proteção. A gente sabe que quando vão ocupar outros espaços, [os artistas] são agredidos de diversas formas. Existe um preconceito muito velado", diz.
"Kevinho tirou até o MC do nome, atingiu outro patamar. É muito significativo que quando um artista fica muito famoso, o título de MC cai fora. [O mestre de cerimônia] é muito característico do funk, da cultura local. Eu vejo isso como um um sinal dos tempos -- ficar distante do funk até para tocar mais em rádio. Recentemente o Kevinho fez música com Gusttavo Lima, antes disso Anitta fez música com a Simone e Simaria. Apesar de também ser muito local, o sertanejo está sempre em alta e carrega menos estigma. E o fato de ser majoritariamente branco não é coincidência", completa.
Ocupar espaços nas rádios, na TV e em casas de show fora das periferias também significa estar vulnerável ao comportamento de um público nem sempre acolhedor ao que é novo, especialmente se esse desconhecido representar a população negra, pobre e periférica. Quando a artista em questão é mulher, somam-se aí as questões de gênero, atreladas ao preconceito em torno do visual marcado pela sensualidade das funkeiras. "As letras das músicas e as coreografias do funk tornaram-se sinônimo daquilo que a imprensa classificava como uma 'inaceitável vulgaridade' e, nesse tom, foi se construindo a atual base de ataque a esse lazer popular", escrevem Rosilene Alvim e Eugênia Paim em "A febre que nunca passa: o funk, a sensualidade e o 'baile do prazer'", em referência à imagem das funkeiras entre o fim da década de 1990 e os anos 2000. Não à toa, ao criar a tal persona artística, muitas cantoras do ritmo agora preferem se distanciar do estereótipo que envolve shorts e tops curtos, com muita pele à mostra.
É o que conta Rodrigo Polack, stylist de Ludmilla desde 2015. "Quando começamos a trabalhar juntos, ela era uma menina em busca de um estilo marcante, em um momento de transição do funk para o pop. Ela não queria ser tachada só como funkeira. Eu entrei para tornar esse estilo mais contemporâneo, apresentar silhuetas novas, marcas diferentes, tirá-la da zona de conforto", explica. Ludmilla usava muita roupa justa, que marcava o corpo. "Aos poucos, introduzimos elementos que ela já amava, como o tênis, a outros novos, como a modelagem oversized. Hoje o visual dela é um contraponto entre sexy e esportivo, mas também não é preso a isso", diz ele.
Mudar o estilo significa deixar as raízes?
A pesquisadora Camila Franco Monteiro considera que essas mudanças também são sintomas de uma busca pela internacionalização da carreira. Para ela, o movimento puxado por Anitta tem levado outros artistas, especialmente os que também têm origem no funk, a tentar trilhar caminho parecido ao da cantora. "A questão é que quando você sai da periferia e passa a falar para mais gente, a sua imagem precisa ficar mais abrangente. Uma imagem que faça sentido no mundo inteiro", justifica o stylist de Ludmilla.
Em 2012, quando publicou seus primeiros vídeos cantando na internet, ainda como MC Beyoncé, Ludmilla logo viralizou com seus passinhos, rimas rápidas e voz potente. O sucesso foi tanto que, no começo de 2014, foi contratada pela Warner. Desde então, tem passado por uma série de mudanças -- no nome, na estética, no guarda-roupa -- que a tornam alvo constante de críticas e discussões a respeito de estar negando as suas raízes. "A transformação do tipo 'makeover' não deixa de ser um alerta de quando o artista está indo para um caminho de embranquecimento. É também uma forma de se associar à imagem de vencer na vida", contextualiza Camila Franco Monteiro.
Por mais que tenha mudado, e a despeito do que está por trás dessas alterações estéticas, Ludmilla não está isenta do peso que vem com o funk. Até hoje, enfrenta resistência de marcas poderosas. "No começo, a gente levava não de várias marcas. A Lud não é essa menina padrão que veste 36, é negra, e, por mais que hoje em dia seja mais fácil, ainda há muito preconceito. Ela demorou para ser capa de revista, para fazer campanha publicitária. Hoje é embaixadora da Puma, mas muitas grifes ainda falam que ela não é o perfil, não querem se associar ao funk", conta Polack.
Made in Brazil
É por isso que muitos stylists optam por marcas menores, nacionais e com produção em ritmo de slow fashion. No caso de Ludmilla, entre as etiquetas favoritas estão a mineira Apartamento 03 e a Ellus -- que assina todos os os looks do próximo DVD da cantora. "Todo mês mandamos desenvolver de 12 a 14 roupas para os shows, feitas especialmente para ela e que em geral não são repetidas", explica Polack. Em seus momentos fora do trabalho, contudo, Ludmilla ainda prefere as grandes grifes -- Louis Vuitton, Burberry, Prada e Philipp Plein despontam como favoritas. "Ela prefere comprar essas grifes fora do país, até para evitar algum tipo de negativa nas lojas", diz o stylist.
Léo Bronks endossa o coro: "As marcas ainda têm resistência em trabalhar com artistas de funk. Quando começamos, entramos em contato com mais de 50 -- todas nacionais e não muito grandes. As poucas que responderam estão com a gente até hoje, como a Pace Company. A verdade é que o público é mais maleável do que as marcas em si. Algumas perceberam isso e hoje vêm atrás da gente". Entre as apostas do stylist de Kekel e Kevinho, estão nomes como Seven Brand, Harder Brand, Gold Life, On The Run e The Saint Mafia -- boas representantes da nova geração do streetwear brasileiro.
Outra vantagem de trabalhar com nomes menores, de acordo com Bronks, é a de ser mais acessível ao público. "Além de a peça de grife ser cara, limita o nosso trabalho. Se temos um valor X para gastar e usamos tudo com grife, vamos ter menos peças para trabalhar. Também não adianta usar um look 100% grifado se o público não tem acesso. Comprar um boné igual ao do ídolo faz diferença para um fã, e é algo que gera um retorno positivo para o artista. Algo que a grife não proporciona."
Para as marcas pequenas, essa relação também traz resultados positivos, como conta Rafael Nascimento, diretor criativo da Another Place, label sem gênero de Recife (PE) e estreante da mais recente edição da SPFW (São Paulo Fashion Week). "Sempre temos um retorno muito bom quando os artistas usam as nossas peças, e os fãs geralmente querem o look igualzinho", afirma o estilista, que veste nomes como Pabllo Vittar, Anitta e Ludmilla -- no clipe de "Solta a Batida", os looks com inspiração esportiva da cantora levam a etiqueta da marca. O contato com artistas considerados fora dos padrões também ajuda a trazer uma pluralidade à imagem da marca. "A roupa pode e deve transitar em diferentes e diversos corpos, meios e realidades", completa o designer.
Até quando os stylists optam por marcas caras, preferem as não-tradicionais. As peças delas também custam milhares de dólares, mas refletem um movimento novo da moda. A Off-White é bom exemplo disso. Hoje uma das marcas mais desejadas ao redor do mundo, a etiqueta começou despretensiosa, associada à cultura do hip hop e do grafite nos EUA. Seu fundador e diretor criativo, Virgil Abloh, é bom representante dessa presença outsider no cenário fashion e também da relação simbiótica que o novo streetwear tem com a música de origem periférica. Ex-braço direito de Kanye West, Virgil é hoje o primeiro homem negro a ocupar a direção criativa da Louis Vuitton, uma das casas de moda mais tradicionais do mundo.
Anna Boogie, stylist que trabalha com artistas como Clau, Malia, Tropkillaz e produz também looks da MC Pocahontas, é outra a escolher designers fora do radar para suas produções. "Prefiro trabalhar com marcas nacionais e autorais, que ainda não foram para o mainstream", diz ela. Em sua lista, figuram nomes como Okoko & Abel, Rober Dognani, Felipe Fanaia, Lucas Regal Electric Boots & Belts e Igor Dadona. "Quando a Pocahontas assinou com a [gravadora] Warner, a ideia era que eu desse uma nova roupagem a esse momento, mantendo o mercado que ela já domina ao mesmo tempo em que atinge outros. Meu trabalho tem sido deixar esse visual mais fashionista, mais pop. É pegar uma calça esportiva e colocar um salto alto. Ela é naturalmente sexy, e eu não quero e nem posso tirar isso dela. O que eu faço é trabalhar isso a seu favor", conta a stylist, que traz referências de Nicki Minaj e Cardi B para a nova versão de Pocahontas. "Se lá fora o rap é o gênero mais pop, aqui quem cumpre esse papel é o funk, então olho muito pra esses dois universos que, no fim das contas, convergem", conta Anna.
As medidas do sucesso
Para a pesquisadora Camila Franco Monteiro, essa aspiração à imagem dos artistas americanos ligados ao rap também tem a ver com a sensação de conquista não só material, mas de novos espaços. "É um imaginário que ainda é sinônimo de sucesso", comenta ela.
Os símbolos de ostentação de fato ainda são uma constante no universo do funk, mas ocupam hoje um papel de coadjuvante. Os carros, mansões e as roupas caras agora aparecem nos clipes e letras de maneira mais sutil, menos escancarada em comparação à época em que funk ostentação vivia seu auge, entre meados de 2012 e 2015. O cenário era outro; era o retrato de um período em que o tênis de mil reais da Mizuno, o óculos espelhado da Oakley e a camiseta da Tommy Hilfiger eram novidade na realidade dos jovens da periferia, devido em parte à influência da política de incentivo ao consumo e de crédito do então governo federal, que aumentou a renda das famílias. "Hoje, a situação econômica em que a gente vive não deixa muito espaço para essa ostentação absurda. As coisas mudaram rápido nos últimos anos; talvez por isso agora a ostentação seja mais velada. Até as letras mudaram bastante", diz Camila. "O sucesso e o dinheiro são efêmeros, tanto é que muitas pessoas do funk fazem sucesso e depois voltam a ficar pobres. Não é a longo prazo, por isso faz sentido ostentar, querem aproveitar aquele espaço".
Para entender a transformação no funk desde a época da ostentação até agora, poucos métodos vão ser tão eficazes quanto assistir a clipes da KondZilla ao longo dos anos. A produtora, que ajudou a consolidar o estilo marcado por grifes em toda a parte, agora se dedica a contar histórias mais diversas em suas produções. Para explorar ainda mais sua ligação com a moda, a empresa desenvolveu uma marca própria, a KondZilla Wear. "A KondZilla criou algo que não existia nos clipes de funk. A evolução, tanto dos looks quanto da produção dos vídeos e da própria empresa, é fruto da necessidade de inovação. O público precisa ser surpreendido para se manter interessado, por isso estamos em busca constante por novas ideias e referências", diz Alana Leguth, diretora criativa da KondZilla Wear.
A marca, que começou em 2012 vendendo apenas bonés, passou a confeccionar camisetas, moletons, bermudas e acessórios. Uma das linhas mais icônicas, chamada "A Favela Venceu", faz uma releitura de roupas e acessórios de grifes, inserindo o nome KondZilla no lugar dos logos de marcas como Gucci e Trasher. É emblemático que seja esse o título da coleção que, no melhor estilo Dapper Dan, também dá novos significados a etiquetas inalcançáveis para grande parte das pessoas. É um acesso a outras realidades via consumo que, como define Léo Bronks, está conectado à ideia de realizar sonhos: "É o valor afetivo da moda".
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