Quem foram as mulheres que inspiraram as guerreiras de 'Pantera Negra'?
No filme "Pantera Negra" (2018), sobre o primeiro super-herói negro dos quadrinhos publicados pela Marvel Comics, o reino fictício de Wakanda é protegido pelas Dora Milaje, mulheres que atuam como guardiãs reais. Segundo o site Comic Book Marvel, a inspiração histórica para o desenvolvimento dessas personagens veio, em parte, de um em exército feminino que existiu na África até o final do século 19.
"As mulheres fortes de 'Pantera Negra' são mais do que apenas potenciais inspirações para as mulheres de hoje. Elas também são uma janela para um pedaço verdadeiro da história, embora muitas vezes esquecido. Suas principais antecedentes são as Amazonas do Daomé, guerreiras da região onde atualmente fica a República do Benin, na África Ocidental", explica a historiadora Arica L. Coleman, presidente na Organização de Historiadores Americanos e autora do livro "That the Blood Stay Pure" (Que o Sangue Permaneça Puro, em tradução livre).
Elas detinham o controle
O apelido Amazonas do Daomé foi criado pelos colonizadores franceses, que comparavam as mulheres às lendárias guerreiras gregas. Porém, para os africanos da etnia fon, a principal daquela região, eram chamadas de ahosi, também conhecidas por mino, isto é, "nossas mães" --como as Dora Milaje do filme, treinadas para proteger o rei. A diferença é que também acumulavam a função de esposas reais e não tinham que pacificar tribos vizinhas.
"Elas tinham autoridade para agir como controladoras do poder masculino, interferindo em procedimentos judiciais, concedendo perdões ou atenuando penas impostas. Desempenhavam um papel central", explica Edna G. Bay, professora de estudos africanos da Universidade Emory, nos Estados Unidos, em seu livro "Wives of the Leopard: Gender, Politics and Culture in the Kingdom of Dahomey" (Esposas do Leopardo: Gênero, Política e Cultura no Reino de Daomé).
As ahosi, além de atuarem na política e em cargos judiciais, também eram soldadas e oficiais do Exército. Viviam no palácio do rei, possuíam escravas e, como eram treinadas, sabiam lutar e lideravam ataques a reinos inimigos, à frente das tropas. Suas armas consistiam em lanças, punhais, machadinhas e espadas. Quando conheceram as armas de fogo, levadas pelos europeus, também aprenderam a atirar com destreza. Nas ruas, não podiam ser encaradas, e os civis, em especial os homens, eram ensinados a recuar quando elas pediam passagem.
Retratos da África pré-colonial
Os relatos sobre essas mulheres começaram a surgir no século 17, mas, de acordo com a historiadora Coleman, a origem delas como um Exército ainda é difícil de ser traçada. "Alguns especialistas acreditam que o primeiro desses regimentos era composto por caçadoras chamadas gbeto", comenta.
De caçadoras de elefantes, essas mulheres teriam evoluído para uma milícia e, agindo como espiãs, eram disfarçadas como comerciantes e enviadas para territórios inimigos, onde se integravam à sociedade com objetivos bem definidos: "Elas estudavam estradas da área, contabilizavam o número de guerreiros e aprendiam sobre os hábitos do povo. Então, voltavam para Daomé a fim de transmitir suas estratégias para o rei", informa Edna Bay.
Outras teorias sugerem, por exemplo, que tenham aparecido após guerras sucessivas que levaram a uma baixa da população de homens, de mulheres criadas desde a infância para guardar aposentos reais e até mesmo de esposas reais treinadas como guarda-costas.
Seja qual for sua origem, retratavam o que John Henrik Clarke, pioneiro em estudos africanos e historiador na Universidade da Cidade de Nova York, chamava de a verdadeira realidade da África pré-colonial. No livro "Mulheres Negras da Antiguidade", ele diz que, nos anos anteriores ao colonialismo, "os africanos produziram um estilo de vida em que os homens eram seguros o suficiente para permitir que as mulheres avançassem até onde seus talentos as levassem".
Ícones de força e resistência
No final do século 19, havia entre 4.000 e 6.000 dessas guerreiras, o equivalente a um terço das tropas de todo o reino de Daomé e o suficiente para intimidar o homem branco.
Com a intensificação da invasão europeia na África Ocidental, Daomé enfrentou duas guerras em sequência que duraram quatro anos e, após muitas baixas dos dois lados, resultaram na vitória dos franceses. Sylvia Serbin, historiadora e autora do livro "The Women Soldiers of Dahomey" (As Mulheres Soldados de Daomé), publicado pela Unesco, diz que as ahosi "eram a última linha de defesa entre o inimigo e o rei" e "estavam preparadas para sacrificar suas vidas para protegê-lo".
Léonce Grandin, major francês que as enfrentou em 1895, registrou em "Le Dahomey: À l'Assaut du Pays des Noirs" (O Daomé: No Assalto ao País dos Negros): "O valor das amazonas é real. Treinadas desde a infância com os mais árduos exercícios, constantemente incitadas à guerra, elas levavam às batalhas uma fúria verdadeira e um ardor sanguinário".
Mesmo tão corajosas, explicam as pesquisadoras Arica L. Coleman e Edna Bay, essas guerreiras foram subjugadas, perderam sua força e tiveram de virar donas de casa por imposição dos europeus, que estruturavam sua sociedade de maneira diferente e defendiam que as mulheres não eram capazes. A última ahosi sobrevivente do extinto Reino do Daomé morreu em 1979.
"Por isso, a importância de criar uma estética que desafie, refute e destrua conceitos estereotipados de feminilidade negra. Para mulheres e meninas negras em todo o mundo, Wakanda representa um local fictício em que a beleza natural e a inteligência são normas aceitas de uma sociedade que valoriza e afirma tanto sua feminilidade como sua humanidade. Quão mais significativo é, então, saber que esta visão é baseada na realidade?", questiona Coleman.
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