Com apenas 3% de visão, ela viaja o mundo na companhia de sua cadela-guia
Mellina Hernandes Reis, 35, sempre amou viajar. O diagnóstico de uma deficiência visual, ainda na adolescência, poderia ter feito a paulistana deixar de lado a paixão por conhecer novos lugares e culturas. Mas ela decidiu continuar desbravando o mundo, mesmo tendo cerca de 3% de visão. Ao seu lado, leva uma companhia bastante especial: a cadela-guia Hilary.
As duas são parceiras desde 2014, quando Mellina foi contemplada pelo projeto Cão-Guia, do Sesi São Paulo, em parceria com o Instituto Iris. A labradora, hoje com oito anos, literalmente mudou sua vida, dando a ela mais independência e elevando sua autoestima.
"Antes, eu usava bengala e não tinha coragem de fazer caminhos desconhecidos. Percorria somente o necessário: trabalho-casa-trabalho-faculdade. Quando ia para algum lugar novo, preferia que alguém fosse junto na primeira vez para eu aprender o percurso", lembra-se ela, turismóloga por formação.
Com a chegada de Hilary, além da confiança para encarar trajetos diferentes, veio a certeza de que dificilmente passará por problemas --machucar-se, por exemplo. A cadela-guia permitiu que Mellina recuperasse a autonomia a que estava acostumada antes da redução drástica de visão. "Normalmente, faço tudo com ela: cuido da casa, cozinho, vou à aula de pole dance e a levo à natação. Normalmente, só aos finais de semana ganho a companhia de família e namorado", comenta.
Hilary também ajudou Mellina a se sentir mais segura para encarar viagens sem a companhia de outras pessoas. "Quando comecei a perder a visão, pensei que não conseguiria mais viajar sozinha. Hoje sei que isso é totalmente possível e consigo aproveitar muito, mesmo tendo algumas dificuldades", garante.
De lá para cá, elas estiveram em vários lugares do Brasil. Curitiba inaugurou o itinerário da dupla, quatro anos atrás. Como foi a primeira viagem de Mellina e Hilary sozinhas, rolou um receio --no primeiro dia, pouco se afastaram do hotel. Mas, na manhã seguinte, aproveitaram bem o passeio. As duas já visitaram Florianópolis, Rio de Janeiro, Fortaleza, Salvador e Belo Horizonte, entre outras cidades brasileiras. Inclusive curtiram o Carnaval na mineira Muzambinho.
Viagens internacionais também entraram no roteiro delas, porém, com familiares, amigos ou com o namorado de Mellina como acompanhantes. "Ainda não tive coragem de fazer viagem internacional só com ela, mas está nos planos", adianta.
Antes de Hilary, Mellina costumava encarar roteiros distantes sozinha. A primeira viagem internacional sem companhia foi em 2008, quando visitou uma amiga na França. À época, enxergava bem melhor do que hoje, mas ainda assim via os monumentos disformes e precisava pedir informações a todo instante para chegar nos pontos turísticos.
Borrão no espelho
Aos 14 anos, a turismóloga descobriu a distrofia de cones e bastonetes, o que a levou à perda da visão central (responsável pelo foco). No fim de 2010, ao perceber uma piora do quadro, foi identificada a catarata. No ano seguinte, teve início o processo de perda severa da vista.
"Hoje, tenho em torno de 3% de visão. A claridade me incomoda bastante, principalmente em dias muito claros. Enxergo somente um esbranquiçado. À noite, acabo enxergando um pouco melhor, mas nunca com nitidez. Um exemplo um pouco mais próximo é quando tomamos banho muito quente e o espelho fica embaçado. Ao nos olharmos, só vemos um borrão. É mais ou menos como eu vejo", compara.
Por conta da limitação visual, ela deixou o trabalho que desenvolvia na área de recursos humanos (também é pós-graduada em Gestão Estratégica de Pessoas) e agora se dedica à produção de conteúdo para o blog e redes sociais do projeto "4 Patas Pelo Mundo".
É nele que Mellina compartilha as experiências de viagem com sua cadela-guia e fala sobre a acessibilidade no turismo. Também inspira outras pessoas em palestras, como a que aconteceu há alguns dias no I Encontro Brasileiro de Mulheres Viajantes, em São Paulo.
"Sou responsável por toda a produção do blog, do Instagram, da página no Facebook e do canal no YouTube. Às vezes, peço ajuda para saber qual foto está melhor e se precisa de edição. Aí outra pessoa faz para mim. Na hora de editar os vídeos também faço isso, para saber se tem algum de ponta-cabeça."
Viagens para sentir
"E como é viajar sendo mulher e deficiente visual? Igual! A diferença é que não verei a paisagem e, sim, a sentirei." A frase de um dos textos no "4 Patas Pelo Mundo" confirma que a falta de visão não afeta as viagens de Mellina. Segundo ela, isso dá uma outra dimensão ao propósito do passeio.
"Quando a gente enxerga, se acostuma a ficar muito preso na visão e apreciar só a beleza, só a parte visual. Mas tem muito mais do que isso. Eu aproveito a energia do lugar, o contato com as pessoas, a culinária, os sons, os cheiros, o mar. Hoje também aproveito a Hilary e a felicidade dela. Acho que precisamos aprender a apreciar mais as pequenas coisas", pontua.
Para Mellina, as viagens são sempre enriquecedoras, e ela diz que aprende muito --a ter mais empatia, por exemplo. "Ninguém é igual a ninguém, assim como a cultura de cada região é diferente de outra, e precisamos saber respeitar essa variedade. Aprendo sobre histórias, novas culturas, culinária, conheço pessoas que marcam a minha história", afirma ela, que se diz realizada.
A turismóloga e blogueira garante que sempre volta transformada (para melhor) de cada viagem que faz. "Quando viajo sozinha, sei que estou impactando outras pessoas, pois quem me ajuda se impressiona com a minha história, principalmente por eu estar em um lugar diferente e sozinha. Conseguir fazer tudo me dá mais independência e sensação de liberdade. Eu me sinto satisfeita por não ter deixado o medo me impedir de fazer as coisas. Me sinto vitoriosa."
Nem tudo é perfeito
Infelizmente, ela não escapa de perrengues e de algumas situações chatas. Hilary sempre viaja na cabine do avião, aos pés da dona, e isso nunca gerou dor de cabeça. Mas Mellina já precisou driblar imprevistos com hospedagem, restaurantes, supermercados e até remanejar algumas questões de logística na última hora, para que a viagem não fosse arruinada.
"São situações que envolvem, principalmente, a falta de cumprimento da lei do cão-guia, o que é mais difícil ainda fora do Brasil, pois não temos muito como brigar pelos nossos direitos", argumenta. Mas não é só durante as viagens que as saias-justas acontecem.
"Uma vez, na fila do elevador do metrô, um senhor ficou na frente da porta e começou a me xingar dizendo que eu não pegaria o elevador preferencial, pois ainda por cima estava com um cachorro. Já aconteceu de eu entrar no elevador e as pessoas saírem; de me sentar no metrô e a pessoa ao lado se levantar? Várias dessas!", lamenta.
Se nem tudo são flores, o lado positivo sempre é mais forte e motivo para Mellina seguir adiante. De acordo com ela, a maioria das pessoas se encanta com a cadela-guia. "Quando fui aos Estados Unidos, as pessoas se aproximavam empolgadas, puxando conversa. Fazia muito tempo que não falava inglês. Eu só sorria e agradecia. Não entendia tudo, mas sabia que era sobre a Hilary", lembra-se.
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