POC-CON: feira de artistas LGBTQ+ reúne milhares em São Paulo
Do lado de fora, uma fila dobrava o quarteirão com adolescentes, jovens adultos e até famílias esperando para entrar no salão. Lá dentro, o público se apinhava entre os stands dos artistas da primeira edição da POC-CON, realizada em São Paulo, neste sábado (22), às vésperas da maior Parada do Orgulho LGBTQ+ do Brasil.
A POC-CON, feira de quadrinhos e artes gráficas feitos por artistas LGBTQ+, foi uma idealização de dois quadrinistas gays que quiseram virar os holofotes do universo geek para o seu lado mais colorido.
Mergulhado no mundo dos quadrinhos desde 2007, Mário César já lançou obras como "Bendita Cura", que aborda as temidas terapias de conversão para homossexuais. Seu parceiro na empreitada da POC-CON é Rafael Bastos Reis, criador das "Pornolhices", tirinhas homoeróticas.
Ao som de muita música pop, um grande palco aguardava os competidores do concurso de lipsync e entre os corredores, os visitantes se surpreendiam com as proporções da feira, que estimava receber mais de mil pessoas ao longo do dia. "Eu não esperava ver tanta gente assim aqui", admite o estudante André Valente, 23.
"Tenho notado como vem surgindo mais e mais autores assumidamente LGBTQ+ nos últimos anos. Resolvemos juntar forças e moldar a feira", diz Mário.
Ele e Rafael convidaram alguns artistas e abriram inscrições para outros que quisessem embarcar no projeto. Só no primeiro dia, foram 50 inscritos. No total, foram 345 interessados que, depois de uma triagem, se tornaram os 71 expositores finais. "Separamos os que ainda estavam em nível amador e selecionamos visando a ter representantes de todas as letrinhas da sigla LGBTQ+ e também tendo diversidade racial e de gênero para não ficar uma feira majoritariamente de artistas homens gays e brancos", explica Mário.
Na POC-CON, o público tinha acesso às artes expostas de cada artista em seu próprio stand, além de poder comprar alguns trabalhos que os expositores ofereciam.
Entre os visitantes, estava o casal Francijone e Roberta Oliveira, que veio de Teresina, acompanhado dos três filhos, dois ainda na infância. "Nossa filha mais velha, Renata, 14, que nos convidou. Ensinamos a eles que temos que conviver com o diferente e acima de tudo, ter respeito. Ensinamos a não ter preconceito", garante Roberta.
Existe arte gay?
Helô D'Angelo é formada em jornalismo, mas atualmente se dedica à produção de quadrinhos e planeja lançar seu primeiro livro com apoio de um projeto no Catarse. Para ela, sua sexualidade e seu trabalho estão intimamente ligados.
"Só o fato de eu fazer arte, como uma mulher bi, já é um acontecimento político. O lugar de onde eu falo molda meu discurso. Não acho que exista arte gay, mas o fato de um artista ser LGBTQ+ marca a arte dele", opina.
"Cada aspecto de quem eu sou transborda um pouco nas coisas que eu faço, incluindo meu gênero e sexualidade", concorda Vitorelo, artista que se autodenomina não-binária, bissexual e birracial. "Por conta do cenário político, precisamos desenvolver estratégias artísticas e estéticas para resistir ou até sobreviver à violência de nosso tempo", continua elx, que lançou no ano passado um projeto gráfico chamado "Kit Gay", ironizando o tão comentado (e nunca realizado) manual do governo.
"Minha sexualidade interfere nos meus quadrinhos porque cria uma preocupação maior por representatividade. Isso acontece no momento de criar personagens e situações", diz Aline Zouvi, artista lésbica que se dedica à produção de HQs e zines, com destaque para "Síncope" de 2017, com lançamento na poderosa Comic Con.
A representatividade é tema recorrente nos trabalhos de todas. A arte delas mostra tudo aquilo que geralmente é ignorado. "Faço personagens negras, personagens fora do padrão de beleza branco, não magras, pessoas com vitiligo. Eu tento abranger pessoas que não costumam ser representadas", conta Helô. Aline também produz zines (publicações não-oficiais) focadas em pessoas com alguma doença, seja física ou psicológica. "Acho importante repensar a maneira como a doença é vista", diz.
"Pra mim, as reações mais especiais são as mais silenciosas, em que eu vejo no olhar do leitor a identificação, o reconhecimento. Essa descoberta maluca de que não estamos sozinhos", festeja Vitorelo
Para além do arco-íris
Os desafios para encontrar espaço sendo um artista LGBTQ+ são inúmeros. A própria existência da POC-CON é um passo para um futuro mais inclusivo para o universo geek, ainda tão preconceituoso.
"O mundo nerd/geek ainda é muito LGBTfóbico, racista e machista. Para entrar nesse mercado tradicional, sentimos que temos que nos esconder. Agora estamos criando outros espaços onde podemos existir. A partir do momento que conheci outros artistas nesta situação, percebi que sofríamos a mesma exclusão. Não é uma conquista individual e sim para toda uma classe de pessoas que sempre ficou apagada", diz Helô.
Um evento como a POC-CON é a consolidação deste espaço tão desejado para os artistas excluídos do mainstream. "É uma experiência bastante catártica. A vida de uma pessoa LGBTQ+ pode ser muito solitária, e todos tivemos (ou ainda temos) esse sentimento clandestino de não-pertencimento. É poderoso dedicar um espaço e uma data a essas pessoas porque mostra que não estamos sozinhos", comemora Vitorelo.
Mário relembra como se sentia deslocado na infância e na adolescência por não se perceber como parte de uma comunidade ou ter contato com outras figuras LGBTQ+, seja na vida ou na mídia. "Nos filmes, novelas e seriados, só haviam gays que eram motivo de chacota. Isso gerou muitos conflitos e inseguranças. Não tinha ideia de como ser gay e respeitado ao mesmo tempo. Quando comecei a publicar material abertamente LGBTQ+, não havia quase ninguém fazendo o mesmo e agora, vendo esse tanto de poc reunida numa feira como a nossa, não me sinto mais sozinho nessa jornada", comemora. "Essa sensação de pertencimento é fundamental pra nossa autoestima. O meu maior desejo é que a feira crie no coração de todos os envolvidos o sentimento de orgulho", concorda Rafael.
"Nossa ideia foi justamente a de aproveitar o mês do orgulho LGBTQ+ para aumentar nossa representatividade no meio geek. Ter um governo como o atual que nos menospreza, que promove perseguição a artistas, que toma medidas que ameaçam a vida de nossos pares e que nos difamou tanto com notícias falsas sobre kit gay e outras bizarrices pra conquistar votos, nos faz produzir mais arte e mais arte contra preconceito. Nossa arte é nossa arma de defesa", conclui Mário.
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