"Não quis fazer reconstrução de mama. Mesmo sem um peito, ainda sou mulher"
Jacqueline Faria viu duas fotos suas viralizarem nas redes sociais ao mostrar seu corpo de biquíni sem uma das mamas. As pessoas enalteceram a força da assistente social, de 53 anos, que lamentava o fato de sua aceitação incomodar as pessoas. As hashtags #MeuCorpoMinhasRegras e #MeAmoDemais impulsionaram seu discurso de amor-próprio.
Diagnosticada com câncer aos 37 anos, quando sua filha notou um caroço em uma de suas mamas, a carioca reforçou à Universa que se recusa a fazer a reconstrução mamária com um intuito: mostrar que, mesmo sem um peito, ainda é mulher -- com desejos, vontades e disposta a manter sua vida sexual ativa.
"O diagnóstico foi interessante. Aconteceu quando eu estava lá pelos 37 anos, graças à minha filha caçula, que na época tinha 5 anos. Estávamos viajando, quando em determinado momento, ela tocou minha mama enquanto tomávamos banho e disse 'mãe, tem um carocinho aqui'. Então, respondi: 'quando a mamãe chegar ao Rio ela vai ao médico ver o que é isso'.
Quando voltei para casa, fui ao médico e tive de fazer biópsia. Eu mesma fiz a leitura das lâminas do exame e confirmei o que estava acontecendo, com outro colega de profissão. Acabou constatado ali que era um câncer de mama, no grau 3, que é muito alto. Tive de fazer outros exames e os médicos chegaram ao diagnóstico de triplo-negativo, um tipo mais agressivo. Um diagnóstico muito comum para mulheres negras. Nós acabamos desenvolvendo esse tipo de câncer, que tem cura difícil. Naquele momento, veio uma dor: 'o que vai ser?', 'o que vai ser dos meus filhos?', 'quem vai tomar conta deles?'. Eu era mãe solo, com um filho de 20 anos, além da menina. Era muito complicado. Então, pensei: 'a única coisa que eu posso fazer é tocar minha vida sem tristeza e não deixar de viver exatamente como era antes'. E assim foi feito.
Passei pela mastectomia radical em maio de 2004, não queria uma retirada de quadrante [cirurgia conservadora que retira o tumor e preserva a maior parte possível da mama]. Achava que não valeria a pena. Fiz oito sessões de quimioterapia e 25 de radioterapia. Lembro que minha última rádio foi justamente na época dos desfiles das escolas de samba, em fevereiro de 2005. E eu fui. O médico achou que eu não conseguiria desfilar, mas em nenhum momento me senti debilitada. Nunca fui uma paciente que serviria de modelo para outras, em relação aos sintomas. Como eu botei na minha cabeça que eu não ia fraquejar, que não podia passar mal e deixar meus filhos tristes, isso não aconteceu comigo. E eu me cuido o tempo inteiro para não cair.
Claro que, depois da cirurgia, vieram todos os fantasmas, sobre como seria meu futuro e a vida sexual sem um peito, porque a mama, por mais que tenha uma função maternal com os filhos, também exerce uma função sexual na vida -- e perdê-la para é algo complicado para a mulher. Trabalhei isso muito bem. Achei que tinha de ficar bem não só por mim e pelos meus filhos, mas para mostrar para outras mulheres que elas poderiam ser felizes assim.
O processo de aceitação foi complicado, mas quando comecei a olhar à minha volta e ver pessoas que não têm visão, não têm perna, não têm braços, percebi que é só um peito. Passei a ver isso de maneira muito tranquila. Só que ainda me incomodava ir à praia. Ficava aquela coisa desconfortável. Eu não aceitava prótese dentro do biquíni e maiô. Botava o biquíni e tampava a cicatriz. Aquilo ao longo do tempo foi me incomodando.
Eu já tinha uma tatuagem na panturrilha, então há dois anos resolvi que teria outra em cima da minha cicatriz. Combinei com o tatuador e fizemos em duas etapas. Foi quando fiquei mais confortável para ir à praia. Tive que customizar meus biquínis, porque eles só têm um lado, o outro fica à mostra. Pedi para uma pessoa desenhar modelos, não só para mim, mas para outras mulheres que quisessem. Eu tinha de mostrar às pessoas que eu era aquilo ali: não tinha uma mama, mas continuava a ser mulher, com todas as características, desejo, vontades e a fim de ter uma vida sexual ativa, querendo ser elogiada, desejada.
Nessa caminhada, tive vários namorados, mas só um deles tentou me magoar por causa da minha cicatriz. Foi engraçado, porque a gente trabalhava no mesmo local e começou a namorar. Ele falava muito da reconstrução, algo que eu não queria fazer.
Um dia ele me olhou bem sério e disse 'eu te aceito com seus defeitos, então você tem de me aceitar com os meus'. Pensei: 'meu defeito é o meu peito?'. Olhei para ele, bem séria, e disse: 'numa relação sexual é muito difícil querer beijar duas mamas ao mesmo tempo com só uma boca. Vai conseguir beijar uma, depois outra. O seu defeito é muito pior que o meu; é uma ereção que não acontece. Peru mole, nem dobrado vai entrar'. Ele ficou chocado e não quis mais olhar na minha cara. Eu fui muito grossa, talvez tenha dado uma resposta muito baixa. Mas naquele momento eu tinha de responder à altura, porque ele queria me menosprezar.
Em princípio, tive receio de passar pela cirurgia de reconstrução porque já tinha tido outros dois tumores. Não queria enfrentar mais uma operação, ainda que fosse estética. Depois, comecei a pensar novamente na reconstrução, parei e analisei tudo. Pensei que o melhor era não reconstruir. Eu, na verdade, tive vários problemas com médicos, pois eles eram contrários à minha decisão, acreditavam que eu tinha de colocar a prótese. Mas eu achei que não, porque não reconstruindo minha mama, eu ia quebrar esse padrão do que é bonito ou não.
O bonito é o que eu tenho na essência, o peito não ia mudar minha vida, ainda mais com uma prótese, uma mama que não era minha. Me questionei: 'continuava feliz sem a mama?', 'o que mudaria?'. Por isso não reconstruí. Achei que precisava refletir uma imagem de que eu mesma gostasse, por isso tatuei a rosa. No dia a dia, eu até uso uma prótese dentro do sutiã para ficar mais confortável, para vestir uma roupa. Mas em casa, na praia, eu nunca uso. Me sinto à vontade. Claro que eu sou alvo de reprovação, mas também de admiração. Isso é o de menos, porque para mim o importante é que eu esteja bem.
Minha força veio porque fui obrigada a ser forte durante a minha vida inteira. Primeiro, porque eu sou mulher, negra, pobre, mãe solo e com filhos de pais diferentes. Já enfrentava vários estigmas, mas agora eu era, como algumas pessoas diziam, 'aleijada'. Precisava mostrar que mesmo sem um peito, eu continuava a ser mulher. Continuava bonita. Minha cabeça continuava ativa, continuava pensando. É, eu penso durante 24 horas. O câncer era só mais uma etapa que eu precisaria vencer. Isso me deu muita força. A minha vida sempre foi de muita luta."
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