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Transferência para unidade feminina não garante a segurança de mulher trans

Mulheres transexuais presas em unidades masculinas deverão ser transferidas para presídios femininos - TVePoint
Mulheres transexuais presas em unidades masculinas deverão ser transferidas para presídios femininos Imagem: TVePoint

Felipe Sakamoto e Lucas Cabral

Colaboração para Universa

09/07/2019 04h03

"Acho que o ministro Barroso devia ter feito, antes de tomar essa decisão, uma pesquisa lá dentro [das unidades prisionais], para saber quem quer ir. E quem quiser ir, vá; quem não quiser, não", afirma Maria - que preferiu não se identificar -, mãe de um detento que namora uma mulher transexual na prisão. A posição de Maria critica a liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, que, no dia 26 de junho, determinou a transferência de mulheres transexuais presas em unidades masculinas para presídios femininos.

A ação foi criada pela ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), após juízes de instâncias menores não aplicarem o que o artigo 4, da Resolução Conjunta nº 1 da Presidência da República e do Conselho de Combate à Discriminação de 2014, que determina: "As pessoas transexuais masculinas e femininas devem ser encaminhadas para as unidades prisionais femininas".

A medida simboliza um avanço, dado que o Estado reconhece a identidade de gênero dessas mulheres. "Nesse sentido, vemos a liminar como positiva. Ficamos mais confortáveis, ao saber que elas vão para um ambiente adequado ao gênero delas", diz Symmy Larrat, presidenta da ABGLT. Mas, a transferência para o presídio feminino não assegura a integridade física e psíquica dessas pessoas.

symmy larrat - Agência Brasil/Marcello Casal Jr. - Agência Brasil/Marcello Casal Jr.
Symmy Larrat, presidenta da ABGLT: "Ficamos mais confortáveis ao saber que elas vão para um ambiente adequado ao gênero"
Imagem: Agência Brasil/Marcello Casal Jr.

O coordenador do projeto Passagens - Rede de apoio a LGBTs na prisão, que mapeia e produz dados sobre esse público, Guilherme Gomes, acompanhou o caso de duas mulheres transexuais transferidas para o presídio feminino por determinação judicial. Ele relata que uma delas precisou ser transferida para o seguro, local onde ficam as detentas ameaçadas. "Ela foi para lá por conta de assédio sexual de outras presas." Depois de um período, e diante da situação, ela optou por retornar ao presídio masculino.

Marcio Zamboni, antropólogo e autor do artigo O barraco das monas na cadeia de coisas: notas etnográficas sobre a diversidade sexual e de gênero no sistema penitenciário, após uma experiência no México, na qual entrou em contato com a população carcerária do país, relata que a transferência de mulheres transexuais para o ambiente feminino culminou em sérias violências físicas. "No convívio comum, as detentas bateram nas mulheres transexuais. Elas precisaram ser transferidas, ficaram segregadas na prisão feminina."

Já no ambiente masculino, as detentas transexuais e travestis acabaram desenvolvendo modos específicos de sobrevivência. Pedro Revellino, agente da Pastoral Carcerária e integrante do GT de Mulher e Diversidade da organização, diz que elas já têm uma vida minimamente organizada, do ponto de vista estratégico. "A família delas não as aceita. Não tem ninguém que as ajude, que as mantém no presídio. Elas têm que se sustentarem sozinhas. Por isso, elas fazem muitos trabalhos lá", acrescenta.

Um deles, inclusive, é a prostituição. Pela negligência do Estado, quando não consegue oferecer condições básicas, e por uma ausência da família, responsável por levar comida e kits de higiene pessoal, as detentas transexuais e travestis recorrem à prostituição para conseguir, nesse caso, um papel higiênico, um prestobarba, ou um chinelo - o mínimo para a subsistência.

O espaço masculino também pode ser um ambiente onde transexuais e travestis constroem relacionamento afetivos com outros detentos. O namoro do filho de Maria com uma mulher trans começou pela falta de assistência médica dada pela administração prisional. Quando ele ficou doente, a parceira o acolheu e cuidou dele. Depois disso, eles se aproximaram e começaram a namorar.

Zamboni acredita que as relações sexuais consentidas são saudáveis para as pessoas dentro das prisões. "A concepção mais adequada e moderna seria pensarmos que os presos têm direitos sexuais, que foram privados da sua liberdade, mas não deveriam ser privados da sua sexualidade". Em nota, a Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo (SAP), em parceria com o diretor do Centro de Políticas Específicas, Charles Bordin, pontuam que a população trans normalmente prefere ficar no convívio masculino. "O principal motivo está no fato das pessoas trans estabelecerem relacionamentos afetivos, o que na prática alivia o sofrimento pelo abandono familiar que é muito comum no caso dessa população".

Em 2016, a pesquisadora e advogada, Natália Sanzovo, perguntou para 23 mulheres trans e travestis, em Minas Gerais e São Paulo, onde elas prefeririam cumprir a pena. A pesquisa foi publicado no artigo O lugar das trans* na prisão. 11 responderam que preferem ir para presídio somente para travestis e mulheres trans; oito escolheram uma ala trans em unidade feminina; duas em convívio com outros homens presos no presídio masculino; uma em presídio feminino com mulheres cisgênero e outra em ala trans em presídio feminino.

keila simpson - Marcos Oliveira/Agência Senado - Marcos Oliveira/Agência Senado
Para Keila Simpson, presidente da Antra, é preciso incluir na decisão o termo travesti, que também se refere ao gênero feminino
Imagem: Marcos Oliveira/Agência Senado

Maria* é contra a obrigatoriedade das mulheres trans e travestis serem transferidas para unidades femininas. Ela defende a opção de escolha de cada detenta. Assim como Keila Simpson, a presidenta da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais): "Não é um privilégio, é uma reparação que essa população precisa, e essa demanda vem justamente porque elas estão sofrendo violências nos presídios masculinos".

Todos os especialistas entrevistados pela reportagem criticam a falta da inclusão de travestis na decisão do ministro. Na liminar, a transexual foi classificada como uma pessoa que se identifica com o gênero oposto ao seu sexo biológico e procura ajustar a genitália à identidade de gênero, enquanto as travestis foram consideradas pessoas que se apresentam pelo gênero oposto ao do nascimento e não procuram mudar seu corpo. "Eu acho que o Estado não deveria diferenciar mulheres transexuais e travestis ou definir essas pessoas a partir da ideia de um corpo físico ou de uma genitália. A definição é muito mais social e discursiva", defende Guilherme Gomes. "Apesar de ser uma decisão que não conste a palavra travesti, é importante constar, porque travesti também é gênero feminino, não é um homem que se veste de mulher", complementa Keila Simpson.

Maria*, referindo ao namoro do filho, diz que hoje percebe uma mudança nele, ainda na penitenciária: "Ele planeja um futuro com a namorada. Ele fala agora sobre sair da cadeia e fazer uma faculdade - e ela também, de planejar um futuro".