Produtora musical encara batalha judicial ao denunciar estupro em bar de SP
Resumo da notícia
- Em maio, a produtora Luciana Rocha de Sousa, de 43 anos, denunciou ter sido vítima de estupro no bar Vila Seu Justino, em São Paulo
- Ela alega ter denunciado o crime a pelo menos três funcionários da casa, que não teriam prestado apoio nem tomado providências
- O homem que teria introduzido o dedo em sua vagina sem consentimento passou nove dias detido e aguarda a conclusão do inquérito em liberdade
- Agora, Luciana tenta provar a ligação entre o suspeito e o estabelecimento, que segundo ela e seus advogados estaria acobertando o crime
Há pouco mais de dois meses, a produtora musical Luciana Rocha de Sousa, de 43 anos, esteve no bar Vila Seu Justino, na zona oeste de São Paulo, para acompanhar o marido, que é músico, durante um show. Ela não imaginava que encararia uma jornada de quase 12 horas entre delegacia, Instituto Médico Legal e Hospital Pérola Byington. Luciana diz que foi vítima de estupro dentro da casa noturna.
Em depoimento para Universa, a produtora musical contou que, em 1º de maio, o suspeito, identificado como William Roberto Leone Failla, teria colocado a mão dentro de sua saia e introduzido o dedo em sua vagina de forma violenta, sem consentimento, enquanto ela assistia à apresentação do marido.
Luciana disse que tentou denunciar a situação a diferentes profissionais que trabalhavam na casa naquela noite (um brigadista de incêndio, uma segurança e, por fim, o gerente). Sem resposta, parou um carro da polícia que passava na rua e levou o caso ao 14º Distrito Policial, no bairro de Pinheiros, onde registrou boletim de ocorrência por estupro consumado. William passou nove dias detido e foi solto devido a um pedido de revogação de prisão preventiva.
Agora, a produtora musical passa por acompanhamento médico e psicológico e tenta provar, com a ajuda de advogados, o vínculo entre o homem que a teria estuprado e o bar, que ela alega não ter oferecido apoio ao saber do ocorrido.
"Quando pedi ajuda pela primeira vez, o brigadista de incêndio disse que não poderia se meter em confusão porque o homem que eu estava acusando era sócio do bar. Ele apagou as redes sociais mas, quando ainda estava preso, o Facebook dele dizia que trabalhava na Vila Seu Justino desde 2015", conta Luciana.
À Universa, a produtora fala com exclusividade o que aconteceu naquela madrugada, como está retomando a rotina e, principalmente, a batalha judicial contra o suposto agressor e o local onde tudo teria ocorrido. Leia o depoimento:
"Acompanhei o meu marido, que ia tocar e precisava de alguém para ajudar com os instrumentos e estacionar o carro. A casa estava bem cheia. Encontrei um sofá e fiquei ali quase a noite toda, esperando para ver o show. Por volta das 2h30, fui para a frente do palco, próximo à entrada do banheiro.
Tinha um grupo de amigos perto de mim e, cerca de cinco ou dez minutos depois, senti a primeira cutucada no ombro. Não dei confiança, vi que era uma brincadeira e ignorei. Ele [William] me cutucou várias vezes, rindo, até que eu o adverti. Disse para curtir a noite, mencionei que estava acompanhada e que isso poderia dar alguma confusão. Quando voltei a olhar para frente, ele chegou perto, no meu ouvido, e me chamou de vagabunda, disse um monte de palavrão ['você é uma vagabunda, cheia de frescura, vai tomar no cu', como consta dos autos do processo ao qual Universa teve acesso].
Ignorei [os xingamentos] e ele chegou ainda mais perto, colocou a mão por dentro da minha saia e enfiou o dedo dentro da minha vagina. Foi tudo muito rápido.
Na hora em que ele começou a me xingar, pensei que fosse me bater. Nem nos meus pensamentos mais criativos poderia imaginar que alguém faria isso assim, num lugar público. Fiquei em choque, mas saí de lá correndo em direção ao banheiro quando vi um brigadista de incêndio, contei o que havia acontecido e apontei para o rapaz que tinha me estuprado. Para a minha surpresa, ele respondeu: 'moça, ele é sócio da casa e eu sou só um brigadista, não me mete em confusão'.
No decorrer dessa conversa, senti sangue escorrendo pelas minhas pernas. Eu estava menstruada naquele dia, mas era um fluxo muito grande, tinha sangue até no chão. Fiquei muito constrangida, corri para o banheiro e me lavei com a água da privada, para não ter de me despir na frente de outras pessoas.
Cheguei a conversar com uma segurança que pensei que, por ser mulher, teria uma postura diferente; mostrei uma foto que tinha tirado do William, mas ela ficou calada, me mandou esperar e disse que ia chamar o gerente, sem me oferecer nenhum tipo de apoio. Quando ele chegou, pegou meu telefone e disse que ligaria no dia seguinte dando o posicionamento da casa; mais uma vez, sem perguntar se eu precisava de alguma coisa.
Encontrei meu marido do lado de fora, contei o que tinha acontecido e ele voltou para dentro da casa, pois queria saber quem era o sujeito. Nisso, vi um carro de polícia descendo a rua e resolvi falar para os policiais o que tinha acontecido. Meu marido estava sozinho e eles estavam em um grupo grande, tive medo de dar alguma confusão.
Ele [William] disse aos policiais: 'vamos lá para a delegacia, ela conta a historinha dela e todo mundo vai para casa'. Parecia que estava acostumado a fazer isso e sair impune.
A delegada [Gabriela Rodrigues de Campos] me atendeu com muito respeito. Quando colheu o depoimento e pediu o exame de corpo de delito, foi muito clara: disse que o resultado seria inconclusivo porque, ao tentar provar um estupro, eles procuram evidências de sêmen. No meu caso, um estupro sem penetração, era apenas mais um protocolo. Ela me disse que seria a minha palavra contra a dele. Passei a manhã inteira nesse processo de delegacia, hospital, IML. Quando terminei, eram 14h.
Desde o começo, sabia que tinha sido vítima de estupro. Eu sou uma mulher moderna, bem informada, sei que as leis mudaram.
Sempre achei que, nesses casos, o silêncio da mulher só é interessante para o estuprador, que segue impune. Ainda assim, fiquei 22 dias em silêncio, sem contar para ninguém, além do meu marido, o que tinha acontecido.
Quando escrevi meu relato nas redes sociais, eu tinha pensado muito. Com a repercussão, uma emissora de tevê me procurou. Gravei a entrevista acompanhada do meu advogado, no escritório dele. Mas foi a pior coisa que me aconteceu. Dias depois, em 29 de maio, o programa transmitiu imagens minhas na Vila Seu Justino, gravadas pelo circuito interno de segurança, mostrando que eu tinha sorrido para a caixa na hora de pagar a conta. Na hora, recebi uma ligação da repórter, perguntando o que eu tinha a dizer sobre aquele sorriso, sem saber que estava ao vivo. Eu nem lembrava que aquilo tinha acontecido. Respondi que não sabia sobre sorriso nenhum e que não tinha visto o vídeo.
Eu achei esse tipo de questionamento, além de ignorante, insensível. Na verdade, eu sorri porque paguei a minha conta de 22 reais com uma nota de 100 e a caixa fez uma brincadeira, dizendo que eu estava dificultando a vida dela. Como ela não tinha nada a ver com o que havia acontecido, eu sorri de volta, sem graça. Durante o programa, o apresentador ainda disse que o laudo do IML havia dado 'negativo' quando, na verdade, o resultado foi 'inconclusivo'.
Depois disso, comecei a receber muitas mensagens privadas no Instagram, algumas de pessoas claramente ligadas à Vila Seu Justino, como funcionários e sócios. Fui chamada de bandida, mentirosa, vagabunda. Hoje já são mais de 200 mensagens.
Uma delas, por exemplo, diz que eu passei a noite inteira me esfregando no cara e depois inventei que fui estuprada. Isso não tem lógica.
Não pretendo voltar tão cedo a frequentar balada nenhuma, não me sinto mais confortável. Outro dia, um grupo de amigos organizou um pagode para arrecadar dinheiro para um amigo que está doente e teve que parar de trabalhar. De repente, comecei a chorar, chamei meu marido e pedi para ir embora, percebi que não estou pronta para isso. Me senti muito mal. Eu não consigo estar em algum lugar cheio de gente e pensar que tem um homem atrás de mim que eu não conheço. Como eu vou lidar com isso? Eu não posso mais sair, ter vida social?"
Acompanhamento médico
Depois de passar por atendimento emergencial no Hospital Pérola Byington, Luciana foi encaminhada a uma psicóloga, com quem segue fazendo acompanhamento custeado pelo governo.
Como estava menstruada no dia do ocorrido, a ginecologista que a atendeu não conseguiu constatar se o estupro havia deixado algum ferimento em sua vagina -- portanto, declarou que o resultado do exame era inconclusivo.
A produtora conta que dias depois do fim do período menstrual continuou sentindo um ardor na região e procurou uma segunda ginecologista, também da rede pública, que pediu uma série de exames e constatou que de fato havia uma lesão. A profissional recomendou, ainda, que Luciana tomasse vacina para hepatite, a fim de evitar o risco de contaminação pela água do vaso sanitário, usada para limpar o sangramento.
Segundo os advogados, tanto a psicóloga quanto a médica constataram que o episódio da madrugada de 1º de maio deixou traumas em Luciana.
William responde em liberdade a um inquérito por estupro consumado. Quando a delegacia concluir a fase de investigações, deve enviar o caso ao Ministério Público, que pode oferecer a denúncia e transformar o caso em um processo criminal.
Alegações
Universa teve acesso ao processo de produção antecipada de provas por meio de uma consulta pública. Nos autos, os advogados de Luciana reúnem uma série de evidências que indicam a ligação entre William e a Vila Seu Justino -- o que eles chamam de "conluio" para "para desacreditar a versão de Luciana e evitar prejuízos ao negócio, não se furtando até mesmo em atacar a honra da requerente".
Dentre elas, capturas de tela que teriam sido feitas em 17 de maio mostram que, antes de apagar as redes sociais, William declarava em seu Facebook trabalhar na Vila Seu Justino desde 2015. Além disso, há prints de fotos dele no estabelecimento em diferentes ocasiões, cercado por pessoas que seriam sócias do local, com a hashtag #FamíliaSeuJustino nas legendas.
Outra ligação que provaria a relação entre suspeito e estabelecimento, segundo os representantes de Luciana, é o fato de os advogados que assinaram o pedido de revogação de prisão preventiva de William serem os mesmos que defendem a empresa em outros casos -- informações que constam do processo, com imagens dos respectivos documentos. Houve a alegação que, no dia do ocorrido, esses advogados estavam com William na festa e se apresentaram na delegacia como testemunhas do suspeito.
O processo apresenta, por fim, uma série de publicações e comentários que teriam sido feitos por sócios da Vila Seu Justino defendendo a versão de William e desacreditando a vítima. As capturas de tela mostram, entre outras mensagens, uma pessoa que seria ligada ao estabelecimento referindo-se a Luciana como "mentirosa" e "bandida".
Há ainda mensagens de terceiros que disseram à produtora que o perfil oficial da casa no Instagram teria enviado mensagens privadas a clientes para difamá-la.
Os advogados pediram à Justiça autorização para buscar mais provas da ligação entre o suspeito e o estabelecimento, como quebra de sigilo fiscal de William e registros de empregados e terceirizados da casa. No último dia 19, no entanto, a 4ª Vara Cível do Fórum Regional de Pinheiros decidiu que as provas apresentadas no processo (publicações dos sócios nas redes sociais, documentos públicos e mensagens atacando Luciana) eram suficientes para dar base a uma ação de danos morais não só contra William, mas também contra a Vila Seu Justino -- medida que os advogados da produtora pretendem tomar em breve.
O outro lado
Em nota, Daniel Veisid, um dos advogados de William, informou à Universa que o suspeito nega com veemência ter introduzido o dedo na vagina de Luciana. No texto, Veisid nega, ainda, que exista qualquer relação entre ele e a Vila Seu Justino.
Por fim, afirma que a equipe jurídica recomendou que William não se manifeste sobre sua versão dos fatos até o fim da ação.
No final de maio, quando Luciana tornou público seu relato, a Vila Seu Justino publicou nas redes sociais uma nota se posicionando "contra todo e qualquer ato de violência".
Procurada pela reportagem, a Vila Seu Justino enviou uma nova nota, por meio de sua assessoria de imprensa, negando qualquer vínculo entre o suspeito e a casa. A empresa voltou a dizer que a equipe se prontificou a chamar a polícia quando soube do ocorrido.
Leia a nota na íntegra:
"Diante dos questionamentos do UOL, a casa reforça a posição de que durante todo o processo foi oferecido o suporte necessário, desde chamar a polícia tão logo foi comunicada, até oferecer suporte psicológico, sempre negado pela cliente. Além disso, mais uma vez informa que o acusado -- preso em flagrante -- não é funcionário e jamais foi sócio da casa. A casa também jamais expôs qualquer um dos envolvidos, tendo apenas compartilhado uma notícia veiculada pela TV sobre o caso e que mostrava que as imagens daquela noite e o laudo do IML que não apontava sinais de estupro.
Ao contrário do que as perguntas da reportagem podem sugerir, a casa não tem poder de polícia e não está sendo acusada de estupro. Assim, tudo o que fez foi responder -- majoritariamente de maneira privada -- às críticas que recebeu. Sempre ressaltando a sua indignação com o caso, reforçando sua contribuição com as investigações e aguardando que a Justiça determine a verdade.
Vale ressaltar que, assim como a casa estava sujeita ao tribunal digital das redes sociais, todos os envolvidos também estavam. Assim, é possível que eventuais clientes tenham se dirigido diretamente à cliente, mas nunca nenhum de seus sócios. A casa ressalta que jamais fez isso e não está de maneira nenhuma de acordo com atitudes como essa."
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