Mandala da Prosperidade é golpe: "Discurso é semelhante ao de seitas"
Imagina só uma comunidade em que cada mulher daria um pouco do próprio dinheiro para realizar o sonho de uma escolhida. E, a cada ciclo, uma nova mulher subiria ao posto de receptora. Assim, em vez de poucas "manas" acumularem riqueza, a renda seria mais bem distribuída e circular. Todas teriam a oportunidade de abrir um empreendimento, fazer a viagem que sempre quis fazer. Ninguém soltaria a mão de ninguém.
Parece a utopia da sororidade, certo? É este mundo cor-de-rosa prometido pela Mandala da Prosperidade, esquema que tem ganhado popularidade entre mulheres feministas e que tem sido denunciado como golpe.
Não se sabe onde o esquema surgiu, mas ele pode ter vários nomes: Mandala, Tear dos Sonhos, Engrenagens dos Sonhos, Fractal Astral. Para entrar, é preciso ser convidada por alguém que já esteja dentro do modelo. Segundo o material de divulgação a que Universa teve acesso, o grupo "usa a geometria sagrada e os cinco elementos da Terra para que as mulheres se movam pelas diferentes etapas do projeto vivencial". Inicialmente, a "novata" é uma das oito mulheres fogo, base da mandala. Para efetivar a sua entrada, ela precisa dar um "regalo" (presente, em espanhol) de cerca de R$ 5 mil à "mulher água", que está no centro do círculo. "Ao dar esse presente econômico, catalizamos o trabalho transformador da confiança e do conhecimento inerente de que estamos sendo apoiadas por algo maior", afirma o material.
O recebimento do dinheiro, totalizado em R$ 40 mil, é a "consagração" da mulher água, que sai da Mandala. Depois disso, aquele círculo é dividido em dois e a Mandala gira. As mulheres fogo se tornam, então, vento. Nesta etapa, elas precisam convidar duas outras mulheres para assumirem o papel de fogo. Ao completar, novamente, a base, essas participantes se tornam terra, cujo papel é o de aconselhamento e apoio emocional. Quando, mais uma vez, outras oito mulheres pagam os "regalos", as mulheres terra finalmente chegam ao centro do círculo, tornando-se água. Este é o momento em que as participantes recebem o presente econômico de R$ 40 mil.
Seria uma boa alternativa para transferir renda, porém algumas pessoas têm dito que o esquema nada mais é do que estelionato embalado em discurso feminista. Segundo o código penal brasileiro, estelionato é "obter, para si ou para outro, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento". "E contar uma história sobre troca de energias e de que dar R$ 5 mil para desconhecidas é uma forma de ajudar é uma forma ardilosa de tirar dinheiro de outras pessoas", explica Gabriela Souza, advogada de Porto Alegre (RS) especializada no atendimento de mulheres,
Especialistas dizem que o discurso usado para convencer as mulheres a investirem economias chega, inclusive, a se assemelhar ao de seitas religiosas. "É uma narrativa característica desses grupos com pontuações alucinógenas", fala a professora e doutora em psicanálise Andréa Landislau.
Mas como as pessoas entram nessa?
"Parecia que estava todo mundo na mesma alucinação". É assim que a diretora artística e professora Sheylli Caleffi, 37, de São Paulo (SP), descreve o encontro do grupo que presenciou, em 2016, por videoconferência. "Elas falavam que depois que entraram para a Mandala, a vida delas tinham mudado, que tinham conseguido emprego. Era tudo muito exagerado", afirma ela, que logo sacou que aquilo não cheirava bem.
Sheylli foi convidada por uma conhecida a entrar no esquema. Aceitou, porque parecia uma boa ideia. A primeira bandeira vermelha subiu quando descobriu que o encontro era online. "Depois, quando as vi falando, percebi que tinha algo de muito errado acontecendo. No entanto, fingi que tinha entrado na delas, pedi mais materiais de divulgação e subi um vídeo explicando porque a Mandala é uma furada."
O vídeo de Sheylli foi publicado no YouTube em agosto de 2016 e, três anos depois de ir ao ar, tem mais de 46 mil visualizações. "Fui bastante perseguida nas redes sociais por pessoas dizendo que eu estava atrapalhando a vida de muitas mulheres."
A autônoma Roberta Maria*, 30, de São Paulo (SP), falava abertamente sobre feminismo e espiritualidade com as pessoas que conhecia quando foi convidada a entrar no Tear dos Sonhos, um dos nomes dados ao esquema. Sem dinheiro e com um filho pequeno, amigas e familiares se mobilizaram para emprestar o "regalo" para Roberta. Ela sentia, no entanto, que algo estava errado. "Elas falavam sobre energias e companheirismo, mas também focavam muito em dinheiro, em recrutar mais gente", afirma. A autônoma ficou com a pulga na orelha quando, em um café, uma "irmã" pediu para que ela falasse mais baixo sobre o Tear dos Sonhos porque "ninguém precisava ficar sabendo". "Elas também diziam para não procurar vídeos, principalmente o de uma mulher descontrolada, para não me desestabilizar. Isso tudo me incomodava bastante", diz. Por fim, Roberta acabou assistindo o vídeo de Sheylli. "Foi quando comecei a pensar em como poderia sair daquela situação."
A autônoma teve que gastar saliva e paciência para conseguir convencer as "tecelãs" (como são chamadas as participantes do Tear) a devolver o dinheiro. "Teve um momento que tive que 'ameaçá-las', dizendo que poderia entrar na justiça caso eu não tivesse a quantia de volta", fala. Felizmente, tudo saiu mais ou menos bem. "Ainda tenho muitas amigas que estão no Tear", afirma. Para não se indispor com as pessoas, ela pediu para que a reportagem trocasse seu nome. "Desde então, eu não sei mais sobre o que elas têm feito porque pararam de falar comigo e me excluíram."
Um discurso acolhedor para consquistar
O medo da exclusão pode ser um dos fatores que impede que o esquema seja mais amplamente divulgado. Roberta diz que, um dos atrativos da Mandala, é o discurso acolhedor. "Todo mundo quer fazer parte de algo maior e realizar um sonho. Foi isso que me pegou." A pressão para fazer o ciclo girar também não deixa as participantes pensarem direito. "As mulheres terra mandam mensagem todos os dias, cobram para que a gente leve mais pessoas. Você não tem tempo de refletir, quando vê já está dentro." Há casos em que, ao se sentirem pressionadas, as participantes tomam medidas extremas. "Já ouvi relatos de mulheres que entraram em esquema de agiotagem, porque saem emprestando ou cobrando dinheiro para convencer outras pessoas", narra Sheylli.
Roberta acredita, no entanto, que muitas mulheres não estão no esquema por maldade, mas por "lavagem cerebral". "Há pessoas mal-intencionadas, mas outras realmente acreditam que estão se ajudando. Se a gente quer realmente ajudar uma outra mulher, temos muitas formas de fazer isso sem gastar um centavo. É ouvir os problemas com o coração aberto, estar do lado", diz a autônoma.
De acordo com Andréa Landislau, a dinâmica da Mandala "se aproveita" da vontade de muitas mulheres têm de se afirmar no mercado, além da situação socioeconômica do país. "Eles têm um discurso de luta contra a desvalorização da mulher, o que acaba atraindo pessoas que estejam mais fragilizadas, seja emocional ou financeiramente falando. Normalmente, são pessoas que estão sem emprego, que não conseguem uma recolocação". Roberta admite que este foi o seu caso. "Eu estava ferrada de dinheiro, precisava arranjar uma forma de melhorar a situação. Claro que, quando surgiu a proposta, fiquei sonhando nas viagens que poderia fazer quando estivesse no centro da mandala."
Outra característica dessas vítimas é a sensação de solidão. "Todo ser humano tem necessidade de pertencimento. Ali elas se sentem acolhidas, porque sentem que estão entre pessoas em quem podem confiar", fala a especialista. Por isso, os encontros diários obrigatórios são importantíssimos para manter a dinâmica. O Tear dos Sonhos, por exemplo, tem rituais como o da carta do coração, onde as participantes escrevem seus medos e queimam o papel em um encontro. "Isso mexe demais com o íntimo da mulher. É uma maneira de desnudar e torná-la mais vulnerável. Aí, a partir do momento em que ela começa a demonstrar toda a sensibilidade, ela torna-se mais facilmente manipulável."
Até mesmo o recrutamento de novas pessoas entra nesse jogo. "Porque você está dando poder a uma pessoa que antes se sentia frágil. Está dizendo que ela é tão poderosa que pode ajudar os outros. E a mulher realmente acredita nisso", finaliza Andréa.
Mas é manipulação ou crime?
A advogada Gabriela Souza já atendeu clientes que caíram no golpe. "Muitas delas são feministas e se sentem obrigadas a entrar para ajudar companheiras", diz. A profissional compara a Mandala a um esquema de pirâmide, modelo comercial não sustentável que depende basicamente do recrutamento progressivo de outras pessoas. Casos como os da TelexFree e Avestruz Master são os mais famosos. "Fica claro por toda a narrativa que elas contam", diz.
A prática de pirâmide financeira é um crime contra a economia popular de acordo com a Lei de número 1.521, de 1951. Para que todas as participantes saíssem ganhando algo com o modelo, seria necessário que a população mundial fosse infinita. "E nem sempre a mandala 'gira', então muitas mulheres estão perdendo dinheiro achando que estão se ajudando", afirma Gabriela.
A advogada diz, no entanto, que a Mandala não deve ser tratado como pirâmide, uma vez que pode acabar afetando inclusive as vítimas. Universa entrou em contato com a assessoria de imprensa do Ministério Público Federal, que informou que não há nenhum caso do tipo sendo investigado pelo órgão porque, segundo o entendimento dos promotores, trata-se de um caso entre particulares. "O procedimento está correto, porque essas mulheres não estão cometendo um crime financeiro. Elas estão sendo vítimas de estelionato."
Como denunciar?
Apesar de ser consideravelmente comum, a Mandala da Prosperidade ainda não é amplamente denunciada porque, muitas vezes, as vítimas convidaram ou foram convidadas por conhecidos ou entes queridos. Uma vez que a Mandala não tem um líder específico, mas é uma rede, ao denunciar, elas comprariam uma briga judicial com pessoas próximas, com quem ainda tem uma ligação emocional.
As vítimas costumam ter vergonha de admitir que foram ludibriadas. "Tive que mandar mensagens para as mulheres que havia convidado explicando que tinha percebido que era furada. Foi uma humilhação", admite Roberta. Para lidar com a frustração, participantes optam por continuar dentro do esquema. "É mais fácil continuar jogando do que admitir que pode ter sido feita de 'boba'", fala Andréa Landeslau. Roberta, por sua vez, quase chora de frustração quando pensa que muitas pessoas que conhece ainda estão dentro do esquema. "Fico me perguntando como elas podem ter paz. Prefiro vender bolo na praia a ganhar dinheiro enganando outras mulheres."
A advogada Gabriela Souza diz, no entanto, que é importante fazer a denúncia. "Se fazemos um BO quando somos roubadas, por que não faríamos nesse caso?" A profissional aconselha que a denunciante junte provas a partir do momento em que percebeu que foi enganada. "Guarde fotos, vídeos, prints, troca de e-mails que provem que você foi pressionada emocionalmente a dar o dinheiro", afirma. O material deve ser encaminhado para uma delegacia, onde será aberto um boletim de ocorrência. "E é o momento da pessoa deixar claro que quer representar criminalmente a denúncia", diz.
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