Frio, medo e saudade: relatos de mulheres que vivem em situação de rua
Ana Paula se aproxima com timidez dos voluntários de uma ONG que está distribuindo doações para pessoas em situação de rua. Ao lado dela caminha o filho, um garoto de olhar distraído. São 22h de uma quinta-feira, no centro de São Paulo. Aos 23 anos, Ana Paula tem semblante sisudo e as vestes rasgadas. Ela está vivendo com o filho e o marido na rua há pouco mais de três meses e conta que, antes disso, moravam em um prédio ocupado, a poucas quadras dali.
"Umas coisas começaram a sumir, acusaram minha família de ter roubado e nos mandaram sair", relata. Agora, o único teto que acolhe a jovem é uma lona preta amarrada com uma corda entre duas árvores.
A moradia improvisada, ela explica, não ajuda a combater o frio, e a única roupa que ainda lhe restava era aquela que estava vestindo. "O 'rapa' passou quando não tinha ninguém e levou tudo o que a gente tinha", explica. O medo de se afastar dos pertences e não encontrá-los quando voltar é uma constante na vida das pessoas em situação de rua. São diversos os relatos de quem perdeu seus objetos pessoais em ações da GCM (Guarda Civil Metropolitana).
O padre Júlio Lancellotti, conhecido por atuar na defesa da população de rua, afirma que essas ações costumam ser agressivas. Ele cobra que a zeladoria urbana respeite a Portaria Intersecretarial nº 01, de 30 de maio de 2017, que dispõe os procedimentos para abordagem das pessoas em situação de rua. Entre outras regras, é proibida a subtração, destruição ou apreensão dos pertences, principalmente os pessoais e de trabalho, como carroças, material de reciclagem e instrumentos musicais.
No entanto, o padre alega que as ações são violentas e não respeitam essas normas. "Os funcionários da prefeitura chegam acompanhados da GCM e arrancam as coisas deles de forma truculenta: documentos, alimentos, remédios etc. Argumentam que eles estão obstruindo a calçada. Quando a gente cobra, a prefeitura sempre nega, mas continua fazendo. É um procedimento tenso, covarde e desumano", comenta.
Por meio de nota, a prefeitura disse que as equipes devem respeitar os bens das pessoas que vivem nas ruas, seguindo os procedimentos orientados no decreto. Ainda de acordo com o município, a GCM, quando acionada pelas subprefeituras, acompanha as ações de zeladoria com o objetivo de proteger os agentes públicos, além de atuar na preservação dos direitos das pessoas afetadas.
A prefeitura lembra que, de acordo com o decreto Nº 57.581, de 20 de janeiro de 2017, entretanto, podem ser recolhidos objetos que caracterizem estabelecimento permanente em local público. Principalmente quando impedem a livre circulação de pedestres e veículos, tais como camas, sofás e barracas montadas ou outros bens duráveis que não se caracterizem como de uso pessoal. A Secretaria Municipal das Subprefeituras ressalta que orienta as equipes em campo, periodicamente, para aperfeiçoar e humanizar cada vez mais as ações de zeladoria.
Lancellotti, porém, explica que o mais comum é que, enquanto uma pessoa sai para ir tomar banho, outra fique tomando conta das coisas, para evitar perdê-las. Foi por causa disso que, para buscar as doações da ONG, Taise Rodrigues deixou o companheiro cuidando dos seus bens na barraca de camping que dividem em uma rua perto da Praça da Sé. "Não podemos vacilar nem um minuto vivendo assim", justifica.
"Depois de um tempo você se acostuma"
Taise vive na rua há cerca de dois anos. Ela comenta que passou o primeiro ano inteiro sozinha, mas conheceu um homem e logo passaram a morar juntos. Depois de se adaptar à nova vida, criou uma rotina que segue desde então: acorda às 6h para desarmar a barraca, caminha até o Parque Dom Pedro 2º para fazer as necessidades básicas e tomar banho, volta para perto do carrinho de supermercado onde guarda suas posses e passa o restante do dia pedindo doações para pedestres e motoristas que passam por ali.
Por volta das 19h, ela e o marido montam novamente a barraca. "É difícil, mas depois de um tempo sobrevivendo assim você se acostuma", aponta Taise.
Em 2018, a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social da prefeitura de São Paulo fez 107,5 mil atendimentos a pessoas nas ruas. O levantamento inclui quem está nessa condição momentaneamente, mas volta para casa no fim do dia ou do mês. Um levantamento realizado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), em 2015, estima que o Brasil tenha 101 mil moradores de rua. São quase 16 mil em São Paulo, segundo censo do FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) do mesmo ano.
Desses, apenas 14,6% são do sexo feminino. O médico psiquiatra Fernando Duarte diz que o machismo pode ser responsável por isso. "Talvez as mulheres tenham uma rede de suporte maior do que os homens."
O psiquiatra comenta que já viu homens em situação de rua que mandam dinheiro para a família que mora longe. "O motivo seria tanto essa 'obrigação' masculina de ir atrás de dinheiro, quanto a vergonha que ele teria de voltar para casa 'tendo fracassado'", comenta. "Por fim, as mulheres em situação de rua que engravidam costumam se esforçar mais para dar um conforto aos próprios filhos do que os homens."
Família desfeita
Para Taise, a pior dor nesses momentos é a saudade. Sua filha de dez anos está sob os cuidados da mãe desde que ela saiu de casa. "Isso não é vida para uma criança", justifica. Ela lamenta por ter vergonha de voltar à antiga casa, pois admite que cometeu um erro ao sair. "Meu irmão passou por mim algumas vezes e fingiu que nem me reconheceu", relembra.
Ela conta que saiu da casa da mãe para morar com o pai de santo do terreiro de candomblé que frequentava. Após a morte do homem, ela foi viver na rua. Fernando argumenta que o ambiente de rua é estressante e quem está vivendo nessa situação está constantemente lidando com o perigo, seja de violência física, sexual, do frio ou da fome.
"Sabemos que a prevalência de transtornos mentais nessa população é altíssima. E, mesmo que não fosse, parece natural que não queiram lembrar detalhes de sua vida, ou dos passos até a vida nas ruas. Tudo isso deve ser muito doloroso. É mais confortável esquecer", pontua.
A poucos metros da morada de Taise, vive a trans Jaqueline Ferreira. Agora com 56 anos, ela lembra que saiu de casa aos dez e nunca mais voltou. Entre idas e vindas em casas e albergues de São Paulo e Minas Gerais, ela morou grande parte da vida nas ruas. Apesar de todo esse tempo, Jaqueline conta que ainda sente medo.
"Não uso drogas, mas toda hora tem alguém aqui perto ficando 'doidão'. Tem dias em que quase não dá para aguentar", diz. O psiquiatra comenta que as drogas são um motivo muito frequente para as pessoas irem viver em situação de rua. E muita gente em situação de rua usa drogas para esquecer os problemas, para se aquecer, ou para ter um pouco de prazer na vida.
Enquanto enfrenta essas dificuldades, Jaqueline conta está na fila por uma vaga em um albergue na região. Há diversos grupos realizando ações sociais voltadas para a população de rua. Entre eles, a ONG Bem da Madrugada, que distribui refeições, água potável, roupas e cobertores quinzenalmente no centro de São Paulo.
"O pior é o frio", queixa-se Marcela Fernandes, 25 anos, enquanto recebe uma muda de roupa do grupo. Há dois meses, ela mora com o marido e dois filhos em uma barraca. Foram para o local após serem despejados pelos organizadores de uma ocupação nas redondezas.
Marcela explica que já chegou a encontrar vagas em um albergue na região, mas, por não permitir casais, preferiu esperar por oportunidades em outros locais. "Só estou aqui enquanto busco uma vida melhor", explica, balançando levemente o filho caçula, que acaba de dormir em seu colo. Ela abre a barraca para guardá-lo e protegê-lo do frio. A outra criança dorme, de barriga para baixo, ocupando a maior parte do espaço. "Aqui dentro é bem mais quentinho", garante.
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