Ela teve o filho assassinado e hoje lê com detentos: "Me sinto acalentada"
As breves pausas para acalmar o choro vêm acompanhadas de sorrisos doídos, quando a pedagoga Isa Vilas Boas, 48, relembra momentos da breve vida de seu filho, Yuri. Ele tinha 24 anos quando foi assassinado, em 2016, por um policial de folga. O criminoso foi solto em maio do ano passado. "Meu filho era músico. Hoje m dia, não consigo mais ouvir música sem chorar", diz Isa.
Os sábados, destinados à reunião da família com comida feita pelo marido, também perderam muito do sentido. Para Isa, o "acalento" vem às terças-feiras, quando ela participa de um projeto que incentiva a leitura dentro das penitenciárias. "A saudade é um vazio que pesa muito. Eu choro todos os dias há três anos. Na maior parte do tempo, finjo que está tudo bem. Ainda tenho dois filhos e eles precisam de mim".
"Meu filho morava em Poços de Caldas, em Minas Gerais, e eu, em Botelhos, no mesmo Estado. Na madrugada em que ele foi assassinado, era para eu estar lá. Eu tinha planejado fazer a viagem e passar o fim de semana com ele. Mas, como estava chovendo muito, eu desisti. Até hoje, me pego pensando que se eu tivesse ido, talvez ele ainda estivesse vivo.
Ele era músico, um ótimo músico. Depois de ensaiar com a banda, ele foi com o baterista até um bar, perto do prédio onde morava. Os dois encontraram um colega do baterista que era policial. Yuri não o conhecia. Os três decidiram subir para o apartamento e tocar mais um pouco. Já era madrugada. Depois, durante os depoimentos, eu descobri que esse homem tinha problemas psicológicos e, junto de antidepressivos, tinha feito uso de drogas e álcool. Ele estava armado e atirou no meu filho.
Eu achava que o Yuri tinha feito alguma coisa que pudesse ter desencadeado essa reação. Não sei, talvez mexido com a mulher do cara ou se enfiado numa briga. Mas o Yuri não era briguento...Durante o velório, o baterista da banda me contou que, na verdade, nada aconteceu. Ele atirou no meu filho sem motivo e disse: 'Todo mundo já fez uma besteira na vida, né?'.
Naquela madrugada, eu não dormi. Tive insônia, uma sensação ruim. Passei a noite assistindo a um filme chamado "Em busca do caminho", que conta a história de um pai que perde o filho. Teve uma frase que, na hora em que ouvi, me marcou tanto, que eu anotei no celular. Ela dizia: "Nossos filhos são o que há de melhor e o pior de nós". Naquela noite, meu filho foi tirado de mim.
Ele foi morto às cinco da manhã e eu só fui avisada ao meio-dia. Foi meu irmão quem reconheceu o corpo e quem me deu a notícia foi minha mãe. Ela foi até minha casa e disse que o Yuri havia levado um tiro. E eu respondi: 'Como assim? Em que hospital ele está? Ele está vivo, né?'. E ela me deu o pior "não" que já ouvi na minha vida. 'Não, filha, ele morreu'. Eu senti que tinha perdido uma parte do meu corpo.
Tudo me lembra o Yuri. Mesmo quando não quero lembrar, as lembranças ficam martelando na cabeça. Como ele era músico, onde tem música, me lembro dele. Todo domingo, almoçávamos juntos na casa da minha mãe. Esse ritual ainda acontece, só que ver os outros sobrinhos à mesa, ver todo mundo ali, sem o Yuri, machuca muito.
Aos sábados, meu marido cozinhava para os três filhos. Acordava cedo e ligava perguntando o que cada um ia querer comer. Essa parte dói bastante, ainda. A gente sente falta. Saudade é um vazio que pesa muito. Nada preenche, não tem o que colocar no lugar. Eu penso nele o tempo todo. Abro a janela de manhã e agradeço por mais um dia ao lado dos meus dois filhos; à noite, agradeço por menos um dia longe do Yuri.
Eu acho que perdoei o assassino do meu filho. Perdoei, porque eu precisava disso para tentar seguir em frente. Não seguir a vida, porque a vida não segue. A gente a adapta. No dia do julgamento, decidi que falaria com a mãe do criminoso. Coincidentemente, quando entrei no banheiro, ela estava lavando as mãos e chorando muito. Eu perguntei se poderia abraçá-la. Nos abraçamos e ela me pediu desculpas. Eu imagino a dor dela. Saber que meu filho não fez nada me alivia. Imagina como é saber que seu filho matou alguém?
Eu encontrei um acalento que me ajudou com esse perdão. Todas as terças-feiras, participo de um projeto voluntário da PUC de Minas Gerais que incentiva a leitura para detentos na penitenciária aqui da cidade.
A gente leva sugestões de livros, eles escolhem e, depois de lerem, escrevem uma resenha sobre a obra. Se a resenha for aprovada pela direção do projeto, eles ganham três dias a menos de pena. Isso me motiva. Sei que a solução para violência é educação. E isso faz com que eu fique em paz em relação ao meu filho.
Esses dias, um ex-detento, que conheci no projeto, me encontrou na rua e me pediu 20 reais. Dei. Três dias depois, ele me procurou para devolver o dinheiro. Foi muito gratificante saber que tive um papel fundamental na vida dessas pessoas e que elas estão vendo um futuro longe do crime. Infelizmente, nada disso vai trazer o Yuri de volta. Mas me fez voltar a ter um propósito de vida."
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.