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"Você fica linda chorando": o que estupradores dizem às vítimas após crime

Raymara Nascimento, 30, foi estuprada pelo pai  durante a infância - Arquivo Pessoal
Raymara Nascimento, 30, foi estuprada pelo pai durante a infância Imagem: Arquivo Pessoal

Talyta Vespa

De Universa

09/08/2019 04h00Atualizada em 04/12/2024 13h22

"Mas antes você queria". Foi essa a frase que a historiadora Juliana*, de 28 anos, ouviu após ser estuprada por um colega de faculdade. Nos ouvidos da professora Raymara Nascimento, de 30 anos, as palavras que ecoaram quando ela confrontou o pai, que a estuprava desde os cinco anos foram: "Você me provocava".

Segundo a advogada e integrante da Comissão Mulher da OAB Santos, Flávia Nascimento, a maioria dos estupradores que cometem violências ocasionais e não estupros de rua, realmente acredita que a vítima queria fazer sexo. E, ela explica, essa relação tem a ver com a cultura do estupro: a sociedade ainda não sabe reconhecer quando uma mulher quer ou não transar. "Existe uma crença de que o 'não' é joguinho feminino. O que tem que ficar claro, de uma vez por todas, é que, depois do 'não', tudo é estupro".

Universa conversou com três advogados especialistas em violência contra a mulher e colheu relatos de vítimas de estupro para selecionar principais frases que estupradores usam na tentativa de invalidar o crime.

Para denunciar estupro, não precisa de prova

Flávia Nascimento explica que, em casos de estupro, a prova é a palavra da vítima. Se o crime foi cometido contra uma criança ou adolescente, ele não prescreve, por isso, é possível denunciar independentemente do tempo que se passou desde o estupro.

"A palavra da vítima é considerada, mas, há vários documentos que podem ser apresentados durante a denúncia. Um laudo psicológico, por exemplo, pode ser considerado uma prova da violência que a mulher sofreu", diz.

Para denunciar, disque 180.

"Você fica linda chorando"

Thainá Frau, de 22 anos, ouviu de seu algoz, um colega em uma festa, que ela "ficava linda chorando" e que isso o excitava.

"Eu chorava enquanto ele me estuprava e era isso que ele dizia o tempo todo. Só me dava vontade de chorar mais. Disse que, como eu estava dançando muito, estava pedindo", relembra Thayná Frau, 22 anos, bancária.

"Não foi estupro, ela gostou".

"Ouvi isso em um dos julgamentos de que participei como defesa da vítima. O agressor disse que, como a mulher havia ficado lubrificada durante o ato sexual, estava gostando do sexo. Isso é um absurdo. A lubrificação é uma reação do biológica do corpo", diz Angelo Carbone, advogado especializado em defesa da mulher e autor da cartilha sobre violência contra a mulher.

"Não foi estupro, não durou nem cinco segundos"

"Eu vivia um relacionamento abusivo há anos. Um dia, transamos e dormimos, mas, acordei com muita dor e vi que ele estava fazendo sexo anal comigo sem o meu consentimento. Gritei, perguntei: 'O que você está fazendo?'. Ele não parou. Depois do término, comentei sobre o estupro com alguns amigos em comum e um deles foi confrontá-lo. Foi quando ele falou: 'estupro nada, não durou nem cinco segundos'", conta Jéssica, 22 anos, estudante.

"Ela era tão feia que fiz um favor para ela"

"O estuprador disse isso durante uma audiência. Ele realmente achou que era uma justificativa, ele acreditou nisso. Com esse argumento, ele tenta deslegitimar o poder de decisão da vítima de acordo com sua aparência física", explica Eliana Passarelli, promotora de Justiça de São Paulo.

"Ela não reagiu"

"O comportamento padrão de uma mulher durante o estupro é a paralisação. Ela fica estagnada, parada, com medo de morrer. E, com base nesse comportamento, muitos estupradores dizem que a mulher estava gostando", diz Eliana Passarelli.

"Ela queria, o 'não' era joguinho"

"Vi um agressor alegar que a vítima estava fazendo joguinho. Depois do 'não', tudo é estupro. E o 'não' pode vir até mesmo durante o ato sexual. Não importa. A mulher pode se arrepender e decidir parar. O homem tem que respeitar isso e, se não respeitar, é estupro. Não tem essa de 'não' que parece sim", ensina Flávia Nascimento, advogada e integrante da Comissão Mulher da OAB Santos.

"Você me provocava"

"Eu só tinha cinco anos quando meu pai me obrigava a tocá-lo e a fazer sexo oral nele. Eu passei um tempo achando que estava sonhando. Até que um dia, ele me violentou enquanto eu estava acordada. A minha lembrança é a de engasgar. Saí da casa dele aos sete anos, mas, durante a adolescência, fui morar com ele de novo. Perguntei por que ele fazia isso comigo e meu pai disse que eu o provocava", conta Raymara Nascimento, 30 anos, professora.

"Você nem gritou"

"Ele me forçou a fazer sexo durante uma festa da faculdade. Eu não queria, mas não consegui reagir. Fiquei calada, estática. Depois de uns dias, me dei conta de que havia sido estuprada e fui falar com o sujeito. Ele disse que não foi estupro porque eu não gritei e porque, antes, eu queria", lembra Juliana*, 28 anos, historiadora.

"Se ela pediu carona é porque queria sexo"

"Fui responsável por um caso de um médico que ofereceu carona a uma mulher e, quando chegou na casa dela, disse que a examinaria. Ele a estuprou. Depois, alegou que, como ela pediu carona, é porque queria sexo", revela Eliana Passarelli.

"Ela estava bêbada, disse 'não' querendo dizer 'sim'"

"O fato de a mulher estar embriagada durante o estupro é um fator agravante ao crime. É estupro de vulnerável, já que a vítima estava paralisada e era incapaz de reagir", completa Eliana.

"Com esses shorts, você estava pedindo"

"Fui estuprada na rua de casa aos 11 anos. Quando os policiais chegaram, contei o que tinha acontecido e eles me perguntaram qual era a roupa que eu estava usando na hora do crime. Eu disse a ele que estava calor, por isso tinha saído de shorts e regada. Um dos policiais disse, então, que 'essas periguetes da periferia saem quase peladas, depois não aguentam o tranco'. Saiu rindo e me deixou sozinha", diz Talita, 24 anos, taróloga.

*Nome fictício a pedido da entrevistada

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Imagem: Arte UOL