Ela passou 10 anos em uma seita: "Disseram que deveria deixar o 'sistema'"
Em setembro de 2014, a redatora Daniele Cavalcante, 39, de Londrina (PR), narra que saiu com a roupa do corpo de uma comunidade na cidade do Rio de Janeiro (RJ). Estava abandonando o lugar onde tinha passado os últimos 10 anos, longe de tudo. "Tive que cortar os laços com os meus amigos e familiares, porque quem não estivesse dentro da comunidade era um inimigo. Tinha de me 'purificar' do 'sistema'", conta a Universa.
Daniele mostra, em seu medium, que seita não é coisa de filmes como "Era Uma Vez em Hollywood", de Quentin Tarantino, ou de série de TV como "O Escolhido". Ela usa a plataforma para narrar os 10 anos que teria passado dentro de uma seita conhecida como "O Caminho", cujos membros costumam, de acordo com a redatora, abordar jovens em igrejas evangélicas que estejam infelizes com a forma com que as congregações interpretam a Bíblia.
Os participantes não podem trabalhar nem estudar fora da comunidade. Relacionamentos amorosos e pensamentos "impuros" são passíveis de julgamento do resto dos membros. Todos poderiam, ainda, passar por "confrontos", em que todos apontavam seus "pecados". "Saí de lá com tiques nervosos por causa do estresse", fala.
Veja a história completa de Daniele.
"Tinha 24 anos quando uma amiga me apresentou a duas pessoas. Ela já tinha falado sobre eles. Éramos evangélicas, frequentávamos os mesmos eventos, mas na época fazíamos parte de uma tendência de jovens que não queriam mais frequentar igrejas, achávamos a religião hipócrita e queríamos coisas mais verdadeiras. Então, essa amiga começou a falar de um grupo de pessoas que não iam a igrejas, eles 'congregavam' em qualquer lugar, sem religião, mas falando de Deus. Foi assim que ela me apresentou a dois conhecidos.
Um deles começou a falar que Deus mandou o grupo criar uma comunidade onde eles viveriam juntos como profetas, e várias 'bases' dessa comunidade seriam espalhadas pelo país.
Como sempre fui muito solitária, me senti bem por ser recebida e fazer novas amizades com quem parecia se importar comigo. Senti que a minha vida ia fazer algum sentido dentro dessa comunidade. Eu teria uma missão muito importante, logo eu seria especial.
Depois de seis meses, decidi mudar para a comunidade do Rio de Janeiro. Deixei tudo na casa da minha mãe, levei só algumas roupas. Era fundamental para qualquer membro provar desapego material e familiar.
Minha mãe aceitou relativamente bem, mas tive que cortar contato com ela, familiares e todos os amigos. Na época foi fácil pra mim. Eram muitas pessoas na comunidade, morando na mesma casa, cercando uns aos outros, vigiando, como se fossem amigos. Quem não era da comunidade era considerado inimigo, isso era repetido o tempo todo, e eu não queria inimigos perto de mim.
Na comunidade
No início, poucos trabalhavam fora da comunidade. Acordávamos e ficávamos conversando. A ideia era todo mundo virar amigo íntimo, estreitar relacionamentos. Fazíamos comida juntos, nos reuníamos para falar dos ensinamentos da seita. Não saíamos muito da casa.
Com o tempo, ficamos cada vez mais confinados lá dentro. Antes íamos ao cinema em grupo, depois isso não era mais aceitável. Sair sozinho, então, era impensável. Deveríamos nos separar do 'sistema' para nos 'purificar'.
Não havia um líder oficial. Algumas pessoas estavam sempre à frente, mas era quase ofensivo chamá-las de líderes. Um especificamente era o que teve a maior parte das 'revelações divinas', sempre conseguia convencer as pessoas sobre o que tínhamos que fazer. Era quem mais recrutava, quem mais confrontava os outros, uma figura típica de liderança.
Também não eram permitidos relacionamentos amorosos, a menos que o próprio Deus dissesse para você se casar e nunca seria com alguém que não fosse da comunidade. Nos 10 anos em que vivi lá, só vi uma pessoa que se casou depois de estar na seita: o líder.
Tive um relacionamento com alguém de lá e nos convenceram a nos separar. Disseram que nossa intenção era só carnal e não divina. Aconteceu o mesmo com outros membros. Quando isso rolava, as pessoas saíam da seita para se casar. Eu, infelizmente, continuei.
Para termos dinheiro, os membros que trabalhavam doavam seus salários. Mas, para ter um emprego ou fazer uma faculdade, era preciso mostrar que Deus havia dado um propósito. Também vendíamos artesanato na rua e chocolate em alguns escritórios e escolas. Ninguém recebia nada pelas vendas ou por trabalhar na empresa de tecnologia que eles tinham montado dentro da comunidade.
Confissão de pecados
Tínhamos um 'ritual' chamado confissão, confronto, exposição e outros nomes. Todo mundo passou por isso várias vezes. O recomendado era que a gente fosse voluntariamente expor nossos 'pecados'. Podia ser desde um momento em que ficamos com raiva de outro membro durante as atividades do dia, ou até um pensamento 'impuro', masturbação -- até sonhos sexuais tinham que ser expostos. A gente se reunia em círculo e a pessoa falava e ouvia o que todos tinham a dizer. Geralmente o que diziam nos deixava ainda pior.
Esses confrontos aconteciam por diversos motivos, achavam que o membro estava 'estranho', ou apontavam que ele andava preguiçoso. Era muito humilhante.
Acreditava muito em toda a teoria deles, de que se nós fizéssemos tudo direitinho seríamos grandes profetas e Jesus ia voltar. Além disso, precisava ser aceita pelo grupo que falava tanto de amor e sobre se importar uns com os outros. Mas depois que comecei a ser o foco dos círculos de confissão, a pressão ficou toda sobre mim.
Isso durou bastante tempo. Uma vez fiquei até um mês sem poder acessar a internet porque disseram que eu precisava focar na comunidade. Eu sempre fui uma pessoa muito tímida, fechada, tenho fobia social, mas é mandatório na comunidade manter relacionamentos de amizade sem ninguém esconder nada um do outro. Eu nunca consegui fazer isso muito bem, então era muito pressionada. Queriam saber o que eu fazia no computador, em vez de conversar com eles.
Comecei a conversar com pessoas na internet para aliviar essa pressão. Foi assim que entrei em contato com movimentos feministas, transfeministas e minha cabeça começou a abrir. Passei, também, a ler alguns livros de filosofia. Tudo isso me fez perceber que existia vida além da comunidade e eu estava perdendo isso porque me convenceram de que o 'sistema' era o sinônimo de morte espiritual. Uma hora eu só disse que ia embora.
Na saída
Primeiro eles me avisaram que, se eu saísse, estaria exposta às coisas que iriam acontecer em breve no mundo. Catástrofes causadas pelo demônio e teorias da conspiração faziam parte das profecias da seita. Quando acontecesse, diziam que eu não iria mais encontrá-los para pedir ajuda.
Depois disseram pra deixar todas as coisas que eu usava, porque não eram minhas, eram da comunidade. Fiquei sem celular, sem nada. Saí sozinha no meio da madrugada e viajei para São Paulo sem saber o que fazer, porque fui embora no mesmo dia em que tomei a decisão.
Fui morar no quarto vago de um amigo que me ajudou, inclusive, a fazer compras, porque eu não tinha nada. Fiquei lá por seis meses.
Percebi que havia passado 10 anos dentro de uma seita apenas meses depois. No começo, senti muita culpa por ter saído, ainda estava naquela programação mental de anos e anos. Mas também percebi que tinha tiques nervosos por causa do estresse que passei lá. Levou alguns meses até clarear a mente e ler algumas coisas sobre seitas e vi que a comunidade era só uma, igual a todas as outras.
Ver a verdade foi uma mistura de alívio e vergonha. Fiquei um ano sem falar com a minha mãe, digerindo tudo que passei. Me senti mais leve porque comecei a estudar sobre seitas e me livrei da culpa de ter ido embora. Eu não estava errada. Isso também me ajudou a me entender como vítima de um condicionamento mental, abusos psicológicos, exploração da minha força de trabalho, tudo a troco de quase nada. E vergonha porque percebi que fui enganada por algo tão idiota, tão óbvio, por tanto tempo. Ainda me sinto assim."
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