"Vai entalar": como elas lidam com a gordofobia no ambiente profissional
Imagine a situação: não bastassem as questões comuns de uma entrevista de emprego, que já deixam qualquer candidato nervoso, a recrutadora pergunta quantos quilos você pesa. A resposta vem acompanhada por constrangimento. A representante da empresa não acredita no que ouviu e, insatisfeita, sai da sala. Segundos depois, volta com uma balança: "Você pode subir para confirmar, por favor?".
Parece diálogo de uma série ruim de televisão, mas foi exatamente o que aconteceu há cerca de quatro anos com a publicitária Bárbara Mendes, 35 anos, ao participar da seleção para trabalhar em uma loja de calçados. "Me senti tão humilhada, que só consegui comentar o ocorrido com o amigo que havia me indicado a vaga. Guardei a experiência para mim até hoje", confessa ela, que diz ter sido a primeira vez que falou abertamente sobre o assunto.
Gordofobia é o termo utilizado para descrever preconceito com pessoas gordas. O caso da Bárbara não é isolado. De acordo com pesquisa realizada em 2017 pela Skol Diálogos, em parceria com o Instituto Brasileiro de Opinião e Estatística (Ibope), 92% dos brasileiros admitem sofrer com o problema. Em muitos casos, na profissão.
O mercado, no geral, subestima as pessoas gordas. Os argumentos são inúmeros: não vão dar conta, só pensam em comer, são preguiçosas, estão doentes, são desleixadas, irresponsáveis e por aí vai. Em razão destes julgamentos, muitas pessoas até desistem pelo caminho, como aconteceu com Bárbara: para evitar comentários gordofóbicos, hoje ela só aceita trabalhos freelancer, pois pode atuar em casa.
Talentos ao vento
Joyce da Silva Fernandes, 34 anos, é a Preta Rara. Ela faz sucesso nas redes por tratar de assuntos relacionados à gordofobia e ao racismo. Segundo a própria, "sofrer com o problema corta os pulsos e os impulsos das pessoas ao longo da vida", especialmente no que diz respeito a dar continuidade nos projetos e na carreira.
"Eu vejo quantos talentos são destruídos no caminho. Isso mexe com o desenvolvimento profissional do indivíduo, sabe? Revisitar essas opressões no ambiente de trabalho, se sentindo diminuído todos os dias, acaba por contribuir na destruição da autoestima e da confiança", argumenta a ativista.
A fisiopatologista Gabi Leme, 33 anos, é prova disso. Tão complicado como o nome da sua profissão é lidar com o próprio corpo ao trabalhar com médicos. "Por que você não faz cirurgia bariátrica?", "Isso não pode ser saudável...", "De alguma forma você sofre...", Vão ter consequências e você sabe" são apenas algumas frases que ela escuta o tempo todo. O detalhe que os críticos não sabem é que ela já enfrentou a cirurgia para redução do estômago.
Sua experiência mais marcante aconteceu ao passar em concurso público, ainda no início da carreira. O que era para ser momento de felicidade, começou mal. "Fui fazer o exame admissional e o médico disse que meu peso era incompatível com o exercício da função. Isso porque eu precisaria ficar de pé. Pedi para ele fazer uma declaração por escrito, já que no edital não constava prova de aptidão física, tampouco limitação quanto a parâmetros de IMC ou massa corpórea", lembra-se. O médico recuou e Gabi foi contratada, mas o sentimento de tristeza ficou por um bom tempo.
Falta de estrutura
Outro problema bem comum é a estrutura da empresa não se adequar a todos os tipos de corpos. Ou, em alguns casos, ser usada como desculpa para chacotas inapropriadas. "Certa vez, não fui contratada porque o uniforme da empresa só ia até a numeração 44", relata Bárbara Mendes.
Preta Rara ouviu coisas ainda piores. "Ao tentar vaga para lavar pratos em um restaurante, cansei de ouvir piadinhas de que eu poderia entalar o quadril na escadinha que dava acesso à cozinha e atrapalhar a produtividade do local", narra.
Não foi só isso: "Quando eu era empregada doméstica, algumas patroas achavam que eu não tinha que comer porque já era gorda. Controlavam a comida com medo de eu comer tudo pelo simples fato de ser gorda. Muitas vezes eu nem mexia na comida delas por constrangimento", confessa Preta, que também já ouviu numa entrevista: "Será que você vai dar conta do trabalho? Aqui é um sobrado e você é meio fortinha..."
O problema afeta qualquer profissão. Camila Flores, 34 anos, é atriz. Bem alta, quadris avantajados, ombros largos, não chega a ser gorda maior (termo para identificar a pessoa gorda, mas que não é obesa). Mas, após a gravidez, cinco anos atrás, ganhou bastante peso. Junto à mudança corporal, outras situações se transformaram, inclusive no trabalho.
Ela deixou de ser convidada para papeis que era chamada antigamente, por exemplo. "Entendo que alguns trabalhos exigem um perfil físico específico, mas por que a personagem de uma empresária de sucesso ou mulher sensual precisa ser magra?", indaga. Além disso, em castings, já ouviu frases pejorativas na cara dura, do tipo:
Ela não é mulherão; é gorda!
Alexandra Gurgel, 30 anos, que comanda o canal Alexandrismos, sempre atuou como jornalista, atividade na qual é formada. No entanto, na vida profissional, o que escancarou mesmo a gordofobia foi seu trabalho atual, como influencer.
Ela conta que, no dia a dia, ocorrem violências que as agências que a contratam mal se dão conta. "Fui chamada para uma campanha e
nenhuma roupa da marca -- de moda! -- serviu no meu corpo. As produtoras ficavam esticando as peças, falando: 'Ah, mas essa aqui é tão grande, será que não cabe em você?' Eu só respondi: 'Mas, gente, não basta servir, tem que ser bonito para o meu corpo, não?!' Chega ao ponto de ter que levar minha própria roupa nas gravações", revela.
Outra situação já vivida por Alexandra é estar no camarim com outras contratadas e ouvir comentários direcionados às mulheres magras, do tipo "Seu corpo é perfeito!". "Falam isso na minha frente, enquanto eu tenho que esticar roupa e do jeito que a peça ficar, ficou!", desabafa.
Não se cale!
No Brasil, não existe lei específica para punir quem pratica gordofobia. Entretanto, a Constituição Federal tem como princípios fundamentais proteger a dignidade de qualquer pessoa, para que exista uma sociedade livre, justa, solidária, sem qualquer tipo de preconceito ou discriminação. Dessa forma, é possível associar a gordofobia como ofensa à honra e à dignidade, o que configura o crime de injúria, previsto no artigo 140 do Código Penal.
Muitas empresas não estão preparadas para lidar com esse tipo de comportamento. Por isso, é tão comum a gordofobia acontecer no ambiente de trabalho.
"Mas tais atitudes podem ser caracterizadas como assédio moral. É importante que os gestores não permitam qualquer conduta que ofenda a dignidade da pessoa, sob pena de a empresa ser condenada ao pagamento de indenização perante a Justiça do Trabalho", explica Christiane Faturi Angelo Afonso, advogada especializada em direito trabalhista.
Nesse contexto, o mais importante é não se calar, denunciando no RH da empresa, no Ministério Público do Trabalho e no sindicato. Vale ressaltar a importância de se registrar um boletim de ocorrência. Para tanto, a vítima deve levar todas as provas -- e-mails, prints das redes sociais, testemunhas, por exemplo.
"Nossa sociedade se mostra cada vez menos tolerante e mais preconceituosa. Diversas vítimas de discriminação são diagnosticadas com depressão, doença que pode evoluir para o suicídio. A legislação brasileira tem se mostrado dinâmica para ajustar a lei e coibir o problema. Acredito que, em breve, teremos uma lei específica para punir quem pratica a gordofobia", confia Christiane Afonso.
Seja empática!
"Por mais que as pessoas se libertem, se amem, se aceitem, a gente vai pisar na rua para tentar um emprego, vai para o ambiente de trabalho, e vai continuar sofrendo gordofobia. Isso porque, infelizmente, foi assim que nossa sociedade foi construída e vai ser um processo de transformação que pode demorar duas, três gerações", avalia Alexandra.
Por essa razão, ela defende: "Não podemos deixar de nos empoderar, ter autoestima e, em especial, entender que nosso corpo não está errado. Quem está errada é a pessoa que coloca a aparência antes das nossas inúmeras capacitações, inclusive as profissionais", enfatiza.
É bem verdade que quem pratica gordofobia, muitas vezes, não percebe que o está fazendo. Entretanto, é obrigação de cada um estar atento, até porque é bastante simples corrigir o erro: basta praticar a empatia, ou seja, a capacidade de se colocar no lugar do outro.
Além do mais, para mudar o preconceito dentro das empresas, é preciso adotar uma postura diferente no dia a dia. Preta Rara descreve a cena que já viveu mais de uma vez como prova: "Dentro do avião, o homem sentado sai do lugar dele para ajudar a moça magra à minha frente com mala pesada e não percebe que eu também tenho uma mala pesada", ela diz.
Ele olha para mim, mas não me vê. Para ele, não sou alguém que precisa de ajuda. As pessoas não são gentis, nem empáticas com os gordos.
Preta Rara
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