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Entre roncos e roubo de cobertor, diferenças no sono podem detonar relação

Ronco é um dos sinais de incompatibilidade no sono  - Getty Imagens
Ronco é um dos sinais de incompatibilidade no sono Imagem: Getty Imagens

Heloísa Noronha

Colaboração para Universa

23/08/2019 04h00

Todo mundo sabe que um sono de boa qualidade é fundamental para a saúde física e mental. Mais cedo ou mais tarde, as noites mal dormidas acabam cobrando o seu preço. "O sono ruim é um dos fatores de risco para várias doenças e disfunções como depressão, ansiedade, fadiga e problemas de memória e atenção, principalmente a curto e médio prazo", diz Fábio Porto, neurologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. A longo prazo, há um aumento do risco de doenças vasculares, arritmias cardíacas e até mesmo males neurodegenerativos, como o Alzheimer.

No dia a dia, nas interações sociais e nos relacionamentos afetivos, dormir mal também acarreta vários prejuízos. "Noites mal dormidas costumam ser um dos fatores que levam as pessoas a se sentirem rejeitadas pelos parceiros. Isso acontece devido ao cansaço excessivo, que faz com que as pessoas se tornem mais egoístas sem darem conta disso", diz Daicí Bertholdi Brandão, psicóloga da Santa Casa de Mauá, no ABC Paulista. "Não são poucas as que vivem de mau humor e se sentem acabadas demais para serem gentis e atenciosas com o par."

Segundo Daicí, o sono de qualidade permite processar melhor as emoções e lidar de forma mais otimista e assertiva com os problemas do dia a dia. "Sem dormir bem, acumulamos não apenas cansaço, mas também estresse e a possibilidade de descontrole emocional que muitas vezes contribui para discussões desnecessárias entre o casal. Quando ambos estão bem descansados, podem tomar decisões sensatas e ter mais condições de ouvir e se concentrar em uma conversa", diz a psicóloga.

Ok, mas e quando o motivo das tretas entre o casal é justamente o fato de que um vem atrapalhando o descanso do outro? Em um casal cujas características de sono são distintas --um gosta de escuro, o outro de claro; um gosta de adormecer com a TV, o outro de silêncio; o ronco de um atrapalha; alguém é um "ladrão de cobertas"; os dois costumam ir para a cama em horários diferentes-- como achar o equilíbrio?

O neurologista Edson Issamu, da rede de hospitais São Camilo, em São Paulo, explica que o sono é dividido em duas fases distintas: a inicial e a profunda, também chamada de REM (Rapid Eyes Movement). "Essas fases se alternam em ciclos, ocorrendo de quatro a seis vezes por noite. A situação de reparação das energias acontece mais durante o estágio REM, que é a etapa em que também surgem os sonhos. Uma boa noite de sono envolve a passagem satisfatória do nosso cérebro pela fase do sono REM. Para que ela ocorra sem diminuição ou interrupções, o ideal é dormir o número de horas suficientes para seu descanso físico e mental, que depende de cada pessoa, e repousar em um lugar calmo, silencioso, totalmente escuro, livre de luzes intermitentes e com temperatura agradável", afirma.

De acordo com Edson, devido a fatores hormonais (em especial, durante o período menstrual e a menopausa) e à própria atividade cerebral multitarefas feminina, que requer um tempo de reparação mais longo, as mulheres contam com uma tendência maior a ter o período de latência --tempo gasto na transição do estado de vigília para o sono-- aumentada. Isso significa maior chance de insônia, junto com risco aumentado de desenvolver depressão.

Todos as discrepâncias citadas podem levar homens e mulheres a vivenciarem um sono fragmentado, escasso e pouco reparador. E, obviamente, a relação também acaba sofrendo o impacto do cansaço acumulado. "Muitos casais vão se distanciando e criando um clima de estranhamento porque não se esforçam para ficar bem. Em vez disso, vão semeando uma belicosidade, ficando cada vez mais queixosos com qualquer mania ou hábito do outro", diz Triana Portal, psicóloga clínica e terapeuta de casais em São Paulo.

Para ela, é necessário evitar ao máximo apelar para uma decisão drástica como dormir em quartos separados, atitude que diminui a intimidade e pode reforçar comportamentos egoístas. "Relacionamento presume doação, altruísmo. Penso que ambos têm que ceder e encontrar um meio termo, adaptando-se ao outro no que for possível, sem que somente um ceda ou sucumba aos hábitos do outro."

Apaga a luz

Na prática, é possível buscar alguns ajustes. Se a TV é imprescindível para um, ele deve lançar mão de recursos para que haja o menor incômodo possível para o outro --usar fones de ouvido, deixar o volume baixo ou mesmo estabelecer um limite de tempo para manter o aparelho ligado. "Ficar com o celular ou tablet navegando na internet também pode incomodar por causa da luz e do som. E aí, vale a mesma medida de evitar excessos, até porque a exposição prolongada às telas não faz bem a ninguém", diz Triana, que sugere ao parceiro que prefere a escuridão usar uma máscara para driblar a luminosidade.

Quem levanta muitas vezes para usar o banheiro deve se mexer da forma mais silenciosa possível, sem acender a luz na cara do outro ou bater a porta. Para Simone Godoy, psicóloga da rede de hospitais São Camilo, quando respeitamos as diferenças, conseguimos aceitar que não somos iguais e que, portanto, nossos hábitos, costumes e gostos são distintos. "Não podemos cobrar que o outro faça como gostaríamos ou achamos que é o correto. Para isso, nada melhor do que apostar na empatia: se colocar no lugar do outro é sempre a melhor opção. Por exemplo, se gosto de dormir tarde e me pedem para dormir cedo, certamente não irei gostar. Vale lembrar que, se o casal está unido, é capaz de, com diálogo, enxergar uma solução satisfatória para os dois."

Um puxa a coberta do outro? Em vez de brigar, basta colocar dois cobertores na cama, uma pra cada um. Um gosta de TV e o outro de silêncio? Que tal permitir-se, de vez em quando, assistir ao filme ou ao programa que o par gosta de ver antes de dormir? Assim ele aceitará sua sugestão quando pedir para que fique na sala vendo TV para você poder dormir no silêncio. Será uma troca.

"Já o ronco normalmente tem causas físicas associadas que devem ser investigadas. Em muitos casos, é possível curar. Caso não seja tratável, o que não ronca deve fazer ao menos um esforço para se acostumar, uma vez que não é algo que o outro possa mudar", diz Triana. "É necessário desenvolver paciência ao lidar com as limitações do outro. Em algumas situações, uma massagem relaxante antes de dormir melhora a qualidade do sono, reduz a ansiedade e contribui para a intimidade entre o casal", sugere Daicí.

As desavenças acontecem, na maioria das vezes, quando um ou ambos são folgados e intolerantes. Exercer suas vontades e necessidades levando em conta o outro não costuma incomodar demais. Se o casal está bem, dá para encontrar equilíbrio adaptando-se ou cedendo. "É essencial observar como anda o relacionamento quando inúmeros incômodos ou queixas vêm à tona, pois podem ser uma forma inconsciente de expressar que algo não vai bem", explica Triana, que recomenda ainda prestar atenção em hábitos nocivos que pode se tornar vícios.

"Alertar o parceiro sobre excessos é uma intervenção necessária se ele passa a noite em claro vendo TV ou na internet, por exemplo. É importante observar se a pessoa não dorme bem, sofre de insônia, troca o dia pela noite, está mais irritada, queixosa ou distante. Quem vive com você pode estar precisando de ajuda e, nesse caso, o respeito pelas idiossincrasias acaba virando negligência."