Kanye West transformou o estilo dos rappers e inspira até Kim Kardashian
O hip hop sempre abraçou o consumo e a moda. O estilo e as roupas de seus expoentes servem até hoje como prova de ascensão social e de expressão da identidade. Não à toa, muitos dos grandes nomes da cena se aventuram no universo da moda, assinando linhas de produtos ou até lançando suas próprias marcas. Só na década de 1990, houve Jay-Z com a Rocawear, Wu-Tang Clan com a Wu Wear e Diddy com a Sean John. Mas poucos souberam usar a conexão música-moda de forma tão assertiva quanto Kanye West.
Desde o começo de sua carreira, ele nunca escondeu o interesse por moda. "Serei o rapper mais bem-vestido de todos", disse ele em 2004, durante o programa Def Poetry Jam. Numa época em que os artistas de hip hop vestiam calças gigantes, camisas de basquete e correntes douradas, Kanye surgiu com uma polo cor de rosa que viraria sua marca registrada.
Não demorou para que começasse a se aventurar como designer. Em 2007, criou um sapato para a marca japonesa A Bathing Ape, que levava o mesmo ursinho de pelúcia das capas de seus primeiros discos. Mais tarde, no mesmo ano, anunciou que lançaria a linha de roupas intitulada Pastelle. Para isso, reuniu um supergrupo de novos talentos, composto por nomes como Virgil Abloh - hoje diretor criativo da grife francesa Louis Vuitton e fundador da Off-White - e Kim Jones, atual diretor criativo da Dior Hommes que, à época, comandava a Louis Vuitton. Uma das criações mais famosas da marca foi a jaqueta azul do tipo college, que estampava a marca Pastelle nas costas em amarelo, usada por Kanye West durante a premiação American Music Awards em 2008.
Poucos meses depois, com muito hype em torno do lançamento, o rapper desistiu da marca, deixando até a própria equipe sem saber o porquê. Há quem diga que a morte de sua mãe tenha influenciado a decisão, outros contam que ele queria lançar uma marca mais sofisticada. A Pastelle acabou sendo sua escola de moda, segundo ex-funcionários em entrevista ao site Complex. Os protótipos dos produtos passaram a valer milhares de dólares, como um par de tênis leiloado por US$ 5 mil.
Com o fim da Pastelle, Kanye West decidiu emprestar seu olhar criativo para outras marcas. Em 2009, assinou uma linha de tênis para a Louis Vuitton, apresentada durante a semana de moda de Paris. Depois, veio a colaboração com a Nike no lançamento do tênis Air Yeezy, enorme sucesso de vendas.
O desejo por uma grife de luxo com seu nome se realizaria em 2011, quando voltou, agora sozinho, à semana de moda parisiense. Entre saias de couro, estampas de cobra e casacos de pele, as peças de sua marca homônima não foram bem recebidas pela crítica. No jornal australiano Daily Telegraph, a jornalista Lisa Armstrong escreveu que o desfile "era o equivalente a Karl Lagerfeld [então diretor criativo da Chanel] lançar uma carreira no hip hop - ou seja, um absurdo".
A parceria com a Adidas
Logo depois do lançamento do Air Yeezy II, em 2012, Kanye sentiu que estava sendo tratado como só mais uma celebridade, e encerrou o contrato com a Nike. Em 2013, ao juntar forças com a Adidas, ele parecia ter encontrado o propulsor que faltava para uma combustão criativa completa. Dois anos depois, chegava ao mundo o Yeezy Boost 350. Unindo alta performance e um design futurista, o tênis esgotou das lojas nos EUA em 12 minutos.
De novo cercado por um time de peso, incluindo seu braço-direito Virgil Abloh e também o bombado estilista Demna Gvasalia, nome por trás da Vêtements e designer da Balenciaga, o rapper teve mais sucesso com a crítica e acertou em cheio com o público. "Agora, sinto que eu tenha chegado enfim a uma visão e entendimento suficientes para conseguir criar. Existem muitos designers mais talentosos que eu, mas tenho perspectiva e coração. E vou dar todo o coração e a perspectiva que puder", disse, ao fim do primeiro desfile da Yeezy.
Conexão moda e música
Para lançar seu sétimo álbum, "The Life of Pablo", Kanye fez uma listening party junto com o desfile da Yeezy. O clipe da música "Wolves" serviu também como campanha para a coleção de inverno da grife francesa Balmain. Hoje, a parceria com a Adidas segue firme, e os tênis são um case de sucesso: estação após estação, fãs e clientes em todo o mundo formam filas quilométricas nas lojas à espera de um par para chamar de seu - só em 2019, a estimativa de lucro da Yeezy é de US$ 1,5 bilhão, segundo a revista Forbes.
"Kanye cria objetos de desejo não só pelo nome ou pelo poder que tem, mas por sua história com a moda. Ele realmente estudou para isso, e essa é a grande diferença em relação a outros rappers. Desde a primeira colaboração com a Louis Vuitton, ele nunca se interessou em só emprestar seu nome, mas sim de fazer parte de todo o processo", diz Leo Bronks, consultor de moda e stylist de nomes como Kevinho e MC Kekel.
Outros artistas do hip hop, como 50 Cent e Jay-Z, tiveram marcas próprias fortes na década de 1990, abrindo caminho para uma relação mais acessível entre os fãs e o visual de seus ídolos. "Foi quando o hip hop virou mainstream, e o estilo, chamado de urbanwear, também se popularizou. Depois, isso se misturaria às marcas de skate, como a Supreme, e chegaria ao que se conhece hoje por streetwear", explica a stylist Ana Wainer, que já assinou o visual de rappers como Criolo, Baco Exu do Blues e BK.
"Por mais que as roupas da Yeezy sejam básicas, têm uma identidade bem-construída, um corte diferenciado e tecidos muito bons. A modelagem oversized cria todo um mistério do que está por trás daquela roupa", afirma Leo Bronks.
A estética das ruas
Entre 2016 e 2017, a alta moda despertou para o potencial do streetwear. A grife italiana Valentino soltou um vídeo estrelado por skatistas para divulgar sua linha de tênis, e colocou Kendrick Lamar como trilha sonora de desfile. A Gucci é outra a absorver símbolos do streetwear e também da cultura afro-americana em suas coleções mais recentes, estabelecendo até uma parceria com o icônico alfaiate Dapper Dan, que vestia os principais artistas e DJs do hip hop das décadas de 1980 e 1990. Mas o número de estilistas negros no comando dessas grifes ainda é pequeno. Além de Virgil Abloh há o francês Olivier Rousteing na Balmain e o haitiano-americano Kerby Jean-Raymond, à frente da promissora Pyer Moss, que venceu o prêmio do CFDA (Council of Fashion Designers of America), um dos mais importantes da moda, em 2018.
"O hip hop não é uma cultura de exclusão, é uma cultura de inclusão. Ao mesmo tempo em que é louvável que o mercado reconheça esses valores estéticos e os traga para dentro dele, existe um grupo de valores humanos que o hip hop carrega e que também precisa ser levado para todos esses ambientes", diz Emicida, que, ao lado do irmão Fióti, também tem sua própria marca, a Lab Fantasma.
É o que Kanye West parece querer atingir com sua grife, mantendo por perto - e incentivando - jovens talentos da moda. Em junho de 2019, ele anunciou uma incubadora para novos designers. A primeira contemplada é a norte-americana Maisie Schloss, que já fez parte do time da Yeezy. "Kanye West teve um background muito parecido com o do Virgil [Abloh], que hoje está na Louis Vuitton quebrando barreiras, mas o tratamento dado pela moda é muito diferente para um e outro. É como se Kanye fosse um leigo que acha que entende do assunto", constata o stylist Leo Bronks. "Agora, ele não mede esforços quando acredita em um projeto, talvez por não ter tido alguém que tenha feito isso por ele."
Kanye e Virgil são amigos de longa data e, antes mesmo da Off-White e da Yeezy serem realidade, estagiaram juntos na grife italiana Fendi. Além dessa experiência, o rapper também passou dois anos aprendendo a fazer sapatos com o renomado designer italiano Giuseppe Zanotti. "Todo mundo dizia: 'Você não pode fazer roupas'. E isso só me deu mais energia", disse ele em entrevista a David Letterman, no programa O Próximo Convidado Dispensa Apresentações, exibido pela Netflix.
Kanye West foi sempre um grande consumidor e entusiasta da moda. Alguns de seus looks mais emblemáticos são bons exemplos dessa fuga ao que se estabeleceu como padrão do estilo rapper - é o caso do visual do Coachella de 2011, em que o fundador da Yeezy usou uma camisa da coleção feminina da francesa Celine.
Hoje, artistas da nova geração do rap e do R&B, como Jaden Smith, Tyler the Creator e A$AP dão continuidade a esse legado e cumprem o papel de referências de estilo para os fãs mais jovens. Ao mesmo tempo, ajudam a romper barreiras de gênero, passeando com naturalidade entre peças consideradas femininas e brincando com cores e proporções inesperadas.
Para além do estilo, Kanye West é referência também no modo de pensar e encarar os negócios. Quem diz isso é a empresária Kim Kardashian, casada com o rapper desde 2014. "Ele me ensinou a nunca ceder e a realmente assumir o controle. Antes, eu era o exato oposto, colocava meu nome em qualquer coisa", conta ela, em entrevista a Forbes.
"Até a Kim Kardashian passou por uma transformação de estilo que tem muito do dedo de Kanye, e isso potencializou sua posição como referência para outras mulheres ao redor do mundo. Essa influência está relacionada à profundidade de pesquisa que existe por trás de cada lançamento, e isso é algo que poucos artistas têm", pontua o beauty artist Dindi Hojah.
É ele o responsável por assinar todos os cabelos do projeto Sunday Service, em que Kanye apresenta versões gospel de clássicos da música norte-americana e de seus próprios hits, em sessões fechadas para sua família e amigos. Único brasileiro a fazer parte da equipe, Dindi foi chamado depois que Kanye se encantou por um cabelo multicolorido criado pelo artista. Desde janeiro de 2019 ele desenvolveu os penteados de mais de 15 Sunday Services - incluindo o realizado durante o festival Coachella, em abril. Evento, aliás, que rendeu cenas memoráveis: um grupo de mais de 60 pessoas, entre cantores, músicos e DJs, vestia roupas em tons de lilás. Nos pés, pares de tênis Yeezy. Os cabelos exuberantes, que variavam entre tranças complexas e penteados com inspiração medieval, ajudaram a construir uma atmosfera etérea.
O projeto, que começou de forma discreta e culminou em um grande show transmitido para o mundo todo, representou não só o retorno de Kanye aos holofotes, depois de uma série de declarações políticas polêmicas, mas também uma nova fase em seu trato com a moda. Tanto que, em julho, ele registrou legalmente o Sunday Service como marca, que deverá contar com roupas, sapatos e acessórios.
Apesar de - muito graças a seus discursos em defesa do presidente dos EUA, Donald Trump - Kanye ser acusado de ter perdido a conexão com as ruas, seu legado fashion ainda deve reverberar tanto pelos caminhos da música quanto da moda. "A moda está sempre atrás de uma coisa que seja bonita e verdadeira; precisa expressar um estilo de vida. O hip hop é mestre nisso. Ele se mantém vivo porque une as duas coisas: beleza e verdade", diz Emicida. No universo de Kanye West, esses conceitos estão em constante evolução.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.