"Meu marido tem 91 anos e o conheci no bar gay mais antigo de SP"
No dia 21 de abril de 1986, Cícero de Oliveira encontrou-se com um grupo de amigos em um bar na região do Largo do Arouche, no centro de São Paulo. Entre eles estava um espanhol tímido, de olhos claros. Na primeira noite, Cícero e José Itoiz, que então tinha 57, ficaram só nos "beijinhos". No fim de semana seguinte, viajaram para o litoral paulista. Um ano e meio depois, foram morar juntos em um apartamento na região central da capital. Hoje, mais de 30 anos depois, os dois posam para uma fotografia no mesmo local onde se conheceram. "Agora, temos nossa fotinha", diz Cícero, com uma emoção truncada na fala.
Hoje, aos 91 anos, José mal fala. Em fevereiro de 2019, quebrou o fêmur. Para se locomover, utiliza uma cadeira de rodas. Manter-se em pé requer esforço, passos calculados e apoio no companheiro. Erguendo-se para a fotografia, Cícero o segura pelos braços e reproduz uma música espanhola nas caixas de som do bar para confortar José. "Como una ola", música romântica na voz de Rocío Jurado, é tocada enquanto os dois caminham pelas cadeiras do bar. Apoiados um no outro, parecem dançar.
O local onde se conheceram e posam para o retrato pertence, hoje, a Cícero. O Caneca de Prata é o bar gay mais antigo de São Paulo e um dos mais antigos no país. Foi comprado por ele há cerca de 20 anos. Teimoso e pouco habituado a mudanças, José ficou sem conversar três meses quando o marido arrematou o bar. Logo depois, habituou-se à ideia, assim como à sugestão de um retrato oficial do casal.
José nasceu no País Basco e chegou de navio ao Brasil em 1957. Ele e mais três amigos fugiam da ditadura de Francisco Franco, que durou de 1939 a 1975 e que perseguia homossexuais. A mesma guerra que levou o general ao poder matou o pai de José Itoiz durante a Guerra Civil Espanhola (1936 a 1939). A mãe, sozinha, o colocou em um colégio católico para trabalhar. Por aqui, viveu sozinho e abriu uma rede de quitandas. Chegou a ter uma unidade no Copan, prédio desenhado pelo arquiteto Oscar Niemeyer no centro de São Paulo.
Cícero admite que sempre gostou de homens mais velhos. "Nunca tive atração por homens mais novos do que eu", explica. Corpulento e com um bigode bem escovado, o empresário se aproveitou dos trejeitos físicos para viver de forma discreta boa parte da vida. Mas nem sempre foi assim.
Nascido em Carnaubal, no Ceará, Cícero cresceu em São João da Fronteira, no Piauí. Chegou em São Paulo em 17 de janeiro de 1981. "Lá no meio do mato eu nem sabia que existia um homossexual", diz. Era frequentemente convidado a ir a bordéis, mas dispensava as mulheres com um leve cochicho, com a distração dos colegas.
Em 1983, relacionou-se sexualmente pela primeira vez com um homem. "Fiquei assustado, com medo de que meus amigos soubessem que eu tinha transado com um homem, e me isolei", diz. Mudou-se sozinho para um apartamento na região do Arouche. Começou a trabalhar em um banco até ser visto por um conterrâneo e retomar o contato com a família.
"Minha irmã vinha em casa com o marido e os filhos. Eu já morava com o José havia muitos anos. Meu sobrinho, no meio de uma conversa, falou que eu era gay. Minha irmã retrucou: mas o Cícero não parece gay. Eu respondi: e para ser gay eu preciso parecer?", relembra. "Tem irmã que é cega. Ou burra."
No início dos anos 2000, médicos encontraram um cisto no fígado de José. Após a cirurgia, ele chamou Cícero, que largou o emprego, para viajar pela Espanha. No avião, os pontos abriram. A ambulância estava ao lado do aeroporto de Madri. Em outra ocasião, Cícero tratou dele durante uma pneumonia. Quando quebrou o fêmur, no início do ano, Cícero o levou para sessões de fisioterapia. "Mas ele é teimoso, não quis mais", reclama. Ele já pesquisou por casas de repouso para hospedar o companheiro. Mas diz que não teve coragem de deixá-lo e prefere levá-lo para a distração do bar onde se conheceram. "Se você tem um companheiro de que você gosta, você tem que cuidar dele."
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