Reação de pais à emenda de J.Paschoal: "Ninguém sonha em ter criança trans"
"Mãe, vou te contar um segredo. Eu sou uma menina." A criança da chefe de RH Marisa (os nomes são fictícios) tinha três anos quando disse essa frase para a mãe. Ela já tinha percebido que havia algo de diferente. Mãe de outro filho 8 anos mais velho, ela notava diferenças. "Ele era muito inteligente, mas tímido. Não interagia com outras crianças e só brincava de boneca, preferia histórias de princesas." Por muito tempo, ela tentou negar a situação. "Eu tentava me convencer de que tudo era normal e falava: "ah, é porque ele gosta de conto de fadas que fala que quer ser princesa."
Com o tempo, Marisa e seu marido foram vendo que não era apenas uma fase. "Quando ele fez quatro anos, me pediu para se vestir da princesa do filme Frozen na festinha. Eu neguei. Disse que era coisa de menina. Na festa, apareceram várias meninas com a mesma fantasia, e ele passou a festa toda infeliz em um canto. Ali, vi que teria que lidar com isso", conta.
Depois de muita resistência, ela e o marido levaram a criança ao pediatra. "Naquela altura, eu já achava que meu filho era gay e torcia para que fosse isso." O pediatra disse que o caso deveria ser tratado por um psicólogo. Ali, começou outro périplo, que levaria a família, dois anos depois, ao Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero do Hospital das Clínicas, em São Paulo, onde a criança teve o diagnóstico de que tem o corpo de um gênero e a cabeça de outro. Em outras palavras: se sente uma menina, mas dentro de um corpo de menino.
"No primeiro dia de consulta, disse para o médico: eu sou uma menina. Eu chorei muito, foi uma mistura de alívio por ver que estava se abrindo e sendo confiante com uma tristeza enorme. Tem um luto muito grande".
A gente se culpa. Eu não esperava nem me sentia preparada para lidar com uma criança transgênero. Essa não é uma coisa que alguém escolhe".
Três anos depois, a criança já com 8 anos pediu para mudar de nome. Agora, chama Clara, nome escolhido por ela mesma. Usa cabelo comprido, tem amigas, usa vestido e está feliz. A família, que desde então faz terapia, se prepara para começar no ano que vem, início da puberdade da menina, o "bloqueio de hormônio": o que significa que vai ter a adolescência retardada. "Ela não vai ter que passar pelo trauma de ver os pelos crescerem, ter bigode. Isso vai ser válido até ela ter 16 anos. Se, com 16 anos, decidir que quer ser menino, ótimo, a gente para com o bloqueio. Tudo é reversível", conta a mãe.
Um plano que pode ser alterado
Esse era o plano da família. Mas ele pode ser alterado. A deputada estadual Janaina Paschoal entrou com emenda a um projeto de lei pedindo que o bloqueio seja proibido em todo o estado de São Paulo. Segundo ela, "as crianças não devem ser submetidas a um tratamento considerado experimental e que envolve hormônios, pelos riscos a saúde".
A possibilidade de que o tratamento seja proibido assusta Marisa. "Eu vou lutar, vou fazer tudo o que for preciso. Sabe o que me motiva mais? Como demorei muito tempo para aceitar que a minha criança era menina, sei o que é ter um menino vestido de menina. Era muito mais bullying, muito mais preconceito. Era mais difícil para todos".
Era um menino triste. Hoje, é uma menina feliz. Não quero que passe por isso de novo."
Ela lembra, de novo, que nenhuma decisão foi fácil para a família e que encarar a realidade doeu. "A expectativa de vida de pessoas trans no Brasil é de 35 anos [devido ao alto número de suicídios e assassinatos]. Você acha que alguém quer isso para o seu filho?"
Se a medida for aprovada e o bloqueio proibido, ela diz que vai lutar, fazer de tudo. "É minha filha. Não posso deixar que ela sofra mais ainda, porque a condição dela já traz um sofrimento."
"Se for preciso, saio do Brasil"
No caso do engenheiro Renato, seu filho (ou filhx, como ele se refere por escrito), de 5 anos, ainda precisa crescer para que a decisão de fazer ou não o bloqueio (que "congela" a adolescência por alguns anos) seja tomada. "Por enquanto, a criança é um menino. O gênero varia. É uma criança que altera os dois lados, mas gosta de usar roupa de menina e maquiagem", ele conta.
Renato e sua esposa, Maria, também engenheira, passaram a estudar o assunto quando perceberam os primeiros sinais de que a criança não se sentia à vontade em seu corpo de menino. "Só queria brincar de 'coisa de menina', vestir fantasias de meninas. Nós sempre deixamos, entendendo que era uma criança, que deveria experimentar, brincar. Mas, aos poucos, foi ficando claro que não era só uma brincadeira", diz Renato.
A mãe também conta: "Outro dia, me perguntou se eu queria ser princesa. Eu disse que não, que não tinha nascido princesa, por isso era engenheira e gostava. Devolvi a pergunta de forma diferente querendo saber como ele iria se chamar quando adulto. Ele respondeu que pode ser Marcelo, Marina, João ou Joana, que isso não importa. O que importa é ser feliz.". A criança faz aulas de balé e usa tutu. E, na festa junina da escola, se vestiu de menina, porque pediu.
De vez em quando, fala que é menino, outras vezes que é menina".
O caso ainda está sendo observado e não existe nada de definitivo sobre vir a fazer o tratamento de bloqueio ou não. A decisão será tomada mais tarde, quando estiver perto do início da puberdade (entre 9 e 10 anos). Mas, se o desenvolvimento continuar similar ao de hoje, os pais acham que o bloqueio deve acontecer.
"Pesquisei muito. Vi que as taxas de suicídio, depressão e automutilação [veja vídeo abaixo] entre as crianças trans que não fazem uso dos bloqueadores são muito maiores. Eu não escolhi isso, ninguém escolhe. Ninguém pensa: 'meu sonho é ter uma filha trans' porque ninguém quer que o filho sofra, que o caminho tenha que ser tão difícil. Mas, se existe essa condição, vai ser tratada da melhor maneira possível. Se eu precisar sair do país para cuidar delx, faremos isso".
Venderemos tudo o que temos e começaremos uma nova vida em algum lugar em que se tenha acesso ao melhor tratamento. Acho que é isso que os pais que têm condições fazem pelos filhos. Mas e quem não tem?".
Renato faz questão de lembrar que ele e os outros pais que frequentam o HC não seguem o estereótipo de "malucos", como algumas pessoas chamam os adultos que apoiam o programa. Há muitas reações preconceituosas que insistem que há pais que fazem questão de "mudar o sexo dos filhos". "Temos família estruturada, nossos pais e irmãos são héteros cis casados, somos o exemplo da chamada família convencional. Mas, mesmo se não fôssemos. Não é que agora existe mais criança trans. Sempre existiu, só que elas eram massacradas, sofriam mais, o que muitas vezes as fazia cair na ilegalidade, no crime ou até mesmo se matar."
Riscos de depressão e suicídio
Coordenador do laboratório, o psiquiatra Alexandre Saadeh, também se preocupa com os pacientes e diz que vai lutar para que o tratamento continue sendo oferecido. "Vamos estudar todas as maneiras de fazer com que o trabalho não seja interrompido. Inclusive estamos checando se fazer isso (impedir o uso de bloqueadores) não seria inconstitucional."
Segundo ele, o tratamento é seguro e feito com amparo do Hospital da Criança, do HC. "Sou especialista em gênero há 25 anos, trabalhamos com 50 pessoas que são voluntárias e não ganham nada para fazer o trabalho", conta. Segundo ele, existem três laboratórios no Brasil: o da USP, um em Campinas e outro no Rio Grande do Sul que fazem o tratamento.
Nosso medo é que, se a terapia do bloqueio for proibida em São Paulo, seja proibida em todo o país."
"Tenho experiência o suficiente para saber que o bloqueio funciona, ajuda o adolescente trans, que tem mais conflitos do que os outros nessa mesma faixa etária, a passarem por essa fase com menos dor. A puberdade, para essas crianças, pode ser devastadora. Outro dia recebi um menino de 11 anos que não tinha feito bloqueio, menstruando, ele estava desesperado. Nem conseguia falar, só chorar. Estava muito deprimido."
Segundo ele, o bloqueio também é usado, há mais de 20 anos, em crianças que, por exemplo, têm a puberdade adiantada e que por isso podem, por exemplo, não crescer. "É um tratamento seguro, feito por profissionais sérios e desenvolvido em todos os países sérios do mundo, como Estados Unidos, Alemanha, Holanda, Canadá."
"As pessoas que são contra o bloqueio usam como argumento a proteção da criança, mas ignoram todo o cenário. Nós queremos proteger as crianças, esse é o objetivo do nosso trabalho." Segundo ele, "não existe uma cura" para a condição. O trabalho é feito para que elas vivam da melhor maneira possível", diz o médico. Saadeh afirma acreditar no diálogo. "Convidei a deputada Janaína para visitar o ambulatório e ela aceitou. Espero que, vendo o nosso trabalho, conversando com as famílias, ela possa mudar de opinião", diz. O encontro deve acontecer na próxima sexta (13).
"As crianças são alvo de experimento", diz Janaína
O projeto que pode proibir a terapia hormonal em crianças trans em São Paulo foi criado pela deputada Janaina Paschoal, do PSL. Segundo ela, sua ideia é proteger as crianças de experimentos e de eventuais danos à saúde. "Médicos no Canadá e Estados Unidos começaram a questionar esse tratamento. No Brasil, e aqui não há nenhum preconceito, isso fica só na mão de psiquiatras, mas os pediatras também precisam ser ouvidos" ela diz.
A deputada garante que as ponderações não têm dogmas religiosos e dizem respeito apenas à saúde dessas crianças. "Estamos diante de experiências. Não estou indo contra a ciência. Só não quero que crianças sejam tratadas como experimentos", ela explica. Quando questionada sobre a preocupação dos pais com o fim do bloqueio de hormônios, ela informa que tem respondido para todos eles. "Eu expliquei para os pais que se bloquear o hormônio na fase pré-puberdade, você tira a possibilidade da criança passar pelos efeitos da puberdade. Vários textos mostram que cerca de 90% das crianças apontadas como trans se aliam ao sexo biológico", ela conta. Renato, pai da criança em tratamento no HC, rebate: "Mesmo que isso seja verdade, 10% desse grupo realmente eram crianças trans que não foram submetidas ao tratamento adequado. E como essas crianças ficarão?" O que precisa ser feito, na opinião dos pais que estão envolvidos com o assunto 24h por dia há muito tempo é investir em triagem e acompanhamento profissional, como o que é feito no HC.
"Não acho que o acolhimento tenha que acabar, de jeito nenhum. Essas crianças devem ser atendidas por psicólogos e até psiquiatras. O que questiono é o tratamento hormonal", finaliza Janaina.
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