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Crivella cometeu crime de homofobia ao vetar obra em Bienal?

Página do livro que Crivella pediu para ser recolhido na Bienal do Rio - Reprodução
Página do livro que Crivella pediu para ser recolhido na Bienal do Rio Imagem: Reprodução

Paulo Gratão

Colaboração para Universa

11/09/2019 04h00

Na última semana, o presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL) e o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (PRB), se envolveram em questões que afrontam a comunidade LGBT.

Para especialistas ouvidos por Universa, as ações de Bolsonaro e Crivella podem ser enquadradas na decisão de junho de 2019 do STF (Supremo Tribunal Federal) que equiparou homofobia e transfobia a crimes de racismo, mas a interpretação e aplicação das eventuais punições dependeriam da análise da Justiça.

No início do mês, Crivella foi às redes sociais dizer que havia determinado a lacração da HQ "Vingadores - A Cruzada das Crianças" e outras obras de cunho LGBT na Bienal do Livro. Ele justificou a ação argumentando que a venda dos quadrinhos feria os artigos do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) que dizem que menores de idade não podem ser expostos à pornografia.

"Foi um ato de censura, baseado em dogmas meramente religiosos. Entendo que deve ser inserido na jurisprudência relacionada à homofobia, sim, além de censura e abuso de poder, tema extremamente relevante nesse momento", afirma Silvana Moreira, presidente da Comissão de Direitos da Criança e do Adolescente, da Ordem dos Advogados do Rio de Janeiro (OAB-RJ).

A advogada especialista em diversidade, Adriana Galvão, diz que o caso deve ser levado à Justiça, tanto pelo Ministério Público, como por entidades que representam a comunidade LGBT. Ela vê como um bom sinal a ação da Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, que pediu ao STF que derrubasse a decisão do Tribunal de Justiça do Rio favorável à ação de Crivella.

Para Henrique Rabello de Carvalho, presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-RJ, a determinação de Crivella é tão discriminatória quanto se o conteúdo apresentasse outras situações, com beijo entre duas pessoas negras, ou duas judias, que também são protegidas pela lei antirracismo. "Se eu digo que é material impróprio, uma afronta à família, um beijo entre duas pessoas negras, ou judias ou dois gays, é racismo, sim", afirma.

Já na visão de Paulo Iotti, doutor em direito constitucional e diretor-presidente do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GSDvS), o prefeito sabe que está aplicando tratamento diferenciado a um determinado grupo ao pedir que somente obras que apresentem beijos homoafetivos sejam lacradas. "Estamos estudando meios de denunciar o prefeito Crivella por crime de homofobia, pedindo para o Ministério Público fazê-lo", indica.

A Aliança Nacional LGBTI divulgou, por meio de comunicado, que a decisão de Crivella "é descabida, porque pressupõe que o afeto por meio do beijo entre dois personagens masculinos seria algo em si pornográfico, o que não é o caso dada a plena igualdade de direitos de casais LGBTI+ e heterossexuais".

O presidente da entidade, Toni Reis disse que a organização já entrou com pedido de tomada de ações cabíveis junto ao Ministério Público e Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.

Bolsonaro e a definição de família

Com base "no que diz a Bíblia", o presidente Jair Bolsonaro afirmou que apenas famílias heterossexuais deveriam ser reconhecidas.

Em entrevista ao canal do YouTube NaLata, o presidente questionou a definição legal de família: "Mudou o governo, não é mais o PT que está aqui, onde a família era um lixo, onde os valores familiares não valiam nada, tá certo? Onde se aceitava qualquer coisa em nome da família. Tá na Constituição (...) o que é família? Tá escrito lá. Emende a Constituição, dizendo que 'seja o que for' que a gente vê como é que fica. Vê como fica porque, como eu sou cristão, eles vão ter que apresentar uma emenda à Bíblia também".

Para Silvana Moreira, da OAB-RJ, a fala fere a decisão de 2011 do STF, que concede à família homoafetiva a mesma proteção prevista à família heterossexual. "Como presidente da República, ele não está acima da lei e não pode desrespeitar o STF, que é o guardião da Constituição deste país", afirma.

Carvalho também enxerga na ação do presidente estímulo à LGBTfobia, o que, segundo ele, também é previsto pela lei. "Não resta dúvida, é um estímulo. Pode ser que o STF interprete de forma diferente, mas a lei de racismo veda a prática, a indução ou a incitação à discriminação."

Já os advogados Iotti e Adriana afirmam que a fala do presidente é passível de diferentes interpretações.

Iotti diz que Bolsonaro pode defender suas visões, desde que respeite as decisões do STF. Apesar de a frase não ser direcionada exatamente a um grupo, se o Judiciário interpretar que a sequência lógica é ofensiva às famílias homoafetivas, "é defensável dizer que ele incorreu em crime".

Adriana afirma que a fala pode ser lida como homofóbica, mas como a determinação do STF é recente, depende da interpretação de quem julga o mérito. "Como ele não disse diretamente, pode abrir margem para outras interpretações. É preciso aguardar o entendimento do Judiciário para se categorizar como crime de homofobia."