Não sou tipo de negra que branco quer no palco, diz atriz de A Cor Púrpura
Quando Alice Walker lançou o livro A Cor Púrpura, em 1982, talvez não imaginasse o impacto que a obra teria e por quantas décadas ainda a história de abuso, preconceito e machismo, protagonizada por Celie, soaria atual. Ambientada no Sul dos Estados Unidos, a trama foi adaptada para o cinema em 1985, com Whoopi Goldberg no papel principal e recebeu 11 indicações ao Oscar. Em 2005, ganhou a primeira montagem teatral na Broadway e, agora, chegou pela primeira vez como musical aos palcos brasileiros, na Cidade das Artes, no Rio de Janeiro.
A atriz que reprisa o personagem de Whoopi é Letícia Soares, que vive seu primeiro grande papel como titular. Ela começou com O Rei Leão (Disney), em 2013, e passou por Mudança de Hábito (2015), Les Misérables (2017), A Pequena Sereia (2018), Sunset Boulevard (2019), entre outros.
Letícia classifica o novo desafio como um misto de realização e responsabilidade, pois, além da partitura complexa, ela dará vida a uma personagem já conhecida pelo público. Assim que soube o resultado dos testes, buscou o livro para entender a Celie imaginada pela autora, e estudou todo o material lançado. Ela comenta que "pega emprestado" alguns elementos que foram incorporados por outras atrizes, mas também coloca sua própria identidade no trabalho.
"Busquei entender onde ela expressa a opressão que vive, como ela fala, como anda. Tem uma pequena referência que eu vi na Celie da Whoopi, achei lindo, e trouxe: quando ela faz uma pose de 'namoradeira' enquanto observa uma cena. A peça começa com a personagem aos 14 anos e termina com 50. Tem que ir crescendo com ela", explica a atriz.
Além da responsabilidade técnica, Letícia sabe que tem a difícil missão de contar uma história de época, mas com temas extremamente atuais na sociedade brasileira, como masculinidade tóxica, violência doméstica, feminicídio e sororidade. "Ainda por cima, a linha que costura todas as histórias é a questão racial. (...) São temáticas que estamos falando hoje e ainda precisamos continuar a discutir, infelizmente. Espero que chegue um dia em que não precisemos mais."
Representatividade
Celie é a primeira protagonista titular de Letícia, mas ela também já foi alternante de Delores, de Mudança de Hábito. As duas personagens têm em comum o fato de terem sido vividas previamente por Whoopi Goldberg e terem sido escritas para atrizes negras.
"Não posso reclamar, nunca fiquei sem trabalho, mas sempre vou fazer audição para coro. Eu tenho a extensão de protagonistas de musicais que já vieram para o Brasil, mas não posso sequer fazer testes, a visão ainda é limitada. Os negros estão subrepresentados, não somos muitos nos palcos, mas somos mais de 50% da população brasileira", afirma.
Ela se descreve como "o tipo de negra que o branco não quer ver no palco", por ter características afrodescendentes mais acentuadas, como cabelo crespo e nariz arredondado. "É fora daquele estereótipo de beleza esperado. Eu fico muito feliz de conseguir, porque é importante mostrar que temos muitas caras. O elenco escolhido é muito colorido, a gente tem muitos tons de negritude. A maior brasilidade da peça é essa." A Cor Púrpura conta com 17 atores no palco.
Pioneirismo na Broadway
Recentemente, a Disney escalou o ator Jelani Alladin para dar vida ao personagem Kristoff, de Frozen, na Broadway. "É surreal o Brasil estar aquém nisso, porque temos mais do que a metade da população de negros. Não deveria ser visto como um problema o negro viver personagens que foram feitos por brancos", diz ela.
Letícia, que era assistente social antes de estrear nos palcos, acredita que o público precisa ser educado sobre racismo. "Lá [nos Estados Unidos], o racismo era uma instituição na lei, que impedia o acesso a determinados lugares. Aqui no Brasil não tivemos isso, por essa razão, a gente tem essa discriminação que é implícita."
Desafios do teatro musical no Brasil
A atriz também diz que, além da representatividade, o teatro musical no Brasil pode estar vivendo, ao mesmo tempo, um momento de apogeu e fim de era, devido às mudanças anunciadas na lei de incentivo à cultura, que ameaçam inviabilizar a produção de grandes espetáculos. "São trabalhos que empregam centenas de pessoas, além das que estão no palco. É difícil ver produções nacionais com tanta gente. Mas eu tenho esperança, a arte dá um jeito de acontecer, é interativa. Se não for na grande franquia, vai ser no teatro da igreja. Dá um jeito de extravasar", diz Letícia.
Desde Les Misérables, em 2017, a Letícia que sobe aos palcos tem ainda mais motivos para contar histórias como a de Celie e ajudar a tornar o mundo um lugar melhor: tornou-se mãe. "No meio disso tudo ainda tem um cara de dois anos que eu chamo de meu."
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