Gata de Rodas: com deficiência, lutou pra estudar; hoje abre Parada LGBT
Ser uma pessoa com deficiência física é desde sempre algo na vida da ativista Ivone de Oliveira. Nascida em 1969, ela foi diagnosticada com poliomielite aos seis meses e sua família foi avisada de que ela nunca iria andar. A cadeira de roda virou uma extensão do carrinho de bebê. E a família, de Itaquera, Zona Leste de São Paulo, precisou lidar com a criança "Longe da Árvore" que crescia diferente de todas as crianças.
Sem muito incentivo para experimentar vivências comuns, como ir à escola e conhecer amigos, Ivone se sentia isolada. Até ter quase 40 anos, ela nunca tinha convivido com outros usuários de cadeira de rodas. Hoje, é conhecida nas redes sociais como a "Gata de rodas".
"Longe da Árvore" é o nome do documentário que será lançado nesta quinta-feira (19), inspirado no best-seller de mesmo nome, escrito por Andrew Solomon. Ele fez uma investigação sobre como famílias lidam com as diferenças com base em sua própria vida, ao revelar para os pais que é gay. "Minha mãe imaginava que seu primeiro filho seria uma criança popular na escola, atlética, sem conflitos com o mundo e basicamente convencional", diz o autor. "E, ao contrário, ela teve a mim".
No mês da Diversidade e próximo ao Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência, no próximo sábado (21), Ivone -- que também escreve no blog Gata de Rodas sobre inclusão social, deficiência e LGBTQI+ --, relembra para Universa o tanto que precisou se esforçar para "plantar sua própria árvore", a despeito da postura de seus familiares.
O depoimento é o primeiro da série de reportagens que trazemos sobre núcleos familiares que enfrentam preconceitos e batalhas simplesmente por terem indivíduos que ousam não esconder quem são.
Filhos diferentes dos pais, nascidos com alguma deficiência fora de padrões estéticos, de orientação sexual, de identidade de gênero. Os que a sociedade insiste em tratar como "exceção", "anormal", "minorizado" têm, aqui, suas histórias de amor e dificuldades contadas com a proposta de plantar, sempre, a diversidade no mundo.
"Fui plantando minha própria árvore"
"Eu sou de uma época que a pessoa com deficiência era totalmente 'longe da árvore', da família e da sociedade. Nunca tive muito incentivo para nada, trabalho, estudo, namoro. Hoje, eu sei que minha família gosta de mim, mas eu pensava que sempre fizeram questão de me podar, querendo me deixar na sombra da ignorância, para evitar a fadiga, sabe? Eles nunca me deram uma cadeira de roda, por exemplo. As pessoas que me davam: a primeira, ganhei em um sorteio. Depois, de um vizinho, de amiga do trabalho e a última, motorizada, da minha amiga que é fotógrafa do meu blog.
Então, eu fui plantando minha própria árvore. Uma das coisas foi frequentar a escola, que foi a duras penas. Fiz do primeiro ao quarto ano em uma perto de casa, mas no ginásio, a classe foi para o primeiro andar e não tinha acessibilidade. Parei de estudar por quatro anos e só voltei quando mudou o diretor. Aí, contava com ajuda da escola, mãe de aluno... até a adolescência.
Minha mãe não queria que eu trabalhasse, mas, quando voltei para o Ensino Médio, já tinha feito minha segunda árvore, de amigos. Que duraram até a faculdade. Fiz Ciências Contábeis um tempo depois.
Voto aos 18 e militância
"Aos 18, quis votar nas eleições, e minha zona eleitoral era na mesma escola que eu tive que sair por não ter acessibilidade. Nas primeiras eleições, foi no andar de baixo, tudo bem. Depois, mudou. Aí me lembrei o quanto sofri porque tive que parar de estudar ali e pensei que não ia desistir. Falaram para eu justificar o voto, mas não quis. Pensei: 'não vou deixar repetir a mesma história'. Aí, me pegaram no colo, pegaram a cadeira e subi.
Em 2007, consegui me primeiro emprego em uma empresa de telemarketing, uma das poucas áreas que dão oportunidade para cadeirantes. Aí, passei a sair de casa. Vi outros funcionários que usavam cadeira de rodas, que não conhecia.
Eu tinha um brilho nos olhos. E então, conheci um ativista, Valdir Timóteo, que me convidou para um movimento no [Parque] Ibirapuera, em 2010. E quis me envolver mais na causa, porque estava falando de pessoa com deficiência para outro semelhante, mas tem que falar pra quem não conhece nossos problemas".
"Gata de rodas" e militância na Parada
"Um 'problemão' que tive foi no sentido afetivo. Em amizades, nunca tive nenhum preconceito. Mas, um episódio da adolescência ficou marcado em mim. Comecei a paquerar um amigo da escola, mas ele só ficava comigo escondido. E ele falou que era porque tinha vergonha de mim. Para piorar, uma priminha me viu e contou para minha mãe. Ela falou que 'não dava conta nem de mim, estava arrumando mais problema'.
Pedia dinheiro para o meu pai para comprar um sapato, sempre gostei de salto alto, botas, e ele dizia 'pra que, você não precisa usar'.
Então, falei para mim que não ia ter nenhum outro relacionamento. Me fechei para o amor. Mas, eu sempre pensei que o problema era das pessoas, não meu. Eu nunca tive vergonha do meu corpo. É de se perguntar: como criei autoestima se sempre fui rejeitada?
Não falava de forma aberta da minha orientação sexual, mas, em 2016, quebrei os paradigmas: sou bissexual. Há um tabu da sexualidade da pessoa com deficiência. E foi quando eu fui para a Parada [LGBT], como participante, e fiquei vendo que faltava acessibilidade. Tive a ideia de ser representante e entrei em contato com a organização. Desde 2017, as pessoas com deficiência LGBTs abrem o evento.
No início, o tema representou muita luta dentro da minha família. Mas, no meio do caminho eu conheci uma amiga, lésbica, negra, que me ajudou a quebrar o gelo em casa. Agora, eu falo com eles sobre racismo e mundo LGBT sem forçar a barra. Já é diferente. Essa foto da matéria representa uma virada na minha vida, porque não tinha nenhuma foto com eles. Eles tinham vergonha de tirar foto comigo! Acho que não virei uma pessoa depressiva porque nunca trouxe o problema para mim. Esse é o segredo!"
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