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Plataforma quer driblar preconceito e estimular a contratação de mães

Gabriele Dias, demitida aos cinco meses de gravidez  - Arquivo pessoal
Gabriele Dias, demitida aos cinco meses de gravidez Imagem: Arquivo pessoal

Janaina Garcia

Colaboração para Universa

26/09/2019 04h00

A editora de texto Ellen passou por apuros há dois anos, quando foi demitida da empresa onde trabalhava, por justa causa, em pleno quinto mês de gestação. "Era um ambiente de muito assédio moral, e acabei me solidarizando, pelo Skype corporativo, com colegas que eram vítimas ali dentro. Foi um erro, mas um choque tremendo, muito maior, ser demitida nessa condição. Ainda mais porque sempre soube que, no Brasil, não se dá emprego para grávida."

Chegou a processar a empresa, mas perdeu —pela legislação brasileira, é proibido demitir grávidas exceto em situações que configurem justa causa. Quando o filho estava com dez meses e ela sem qualquer expectativa de retornar ao mercado formal, soube de uma oportunidade em uma editora e resolveu tentar.

"O mercado não gosta muito de mães, mas enviei meu currículo e fui chamada para um teste, para o qual fui superreceosa de mencionar que tinha filho", diz. "Consegui a vaga, mas com uma carga horária muito maior e um salário bem menor do que eu tinha antes. Mas a gente tem boletos para pagar e, de alguma forma, é preciso recomeçar"

É justamente como uma oportunidade de recomeço, mas sem o "peso" de ter de revelar se tem ou não filho, que profissionais mães podem agora contar com a ajuda de uma iniciativa para recolocação no mercado de trabalho.

Batizada de Contrate uma Mãe, a plataforma funciona como um banco de currículos específico para mulheres que têm filhos -sejam elas gestantes ou não. Antes de as mães enviarem o currículo, a ferramenta pede o preenchimento de informações gerais, como nome e contatos, e algumas mais específicas, como "habilidades e competências como mãe e profissional" que a candidata desenvolveu até aquele momento.

11 mil currículos cadastrados

De acordo com Rogério Cesar Pinheiro, CEO da agência de publicidade Team Work, uma das idealizadoras do projeto,a plataforma já recebeu ao menos 11 mil currículos dos mais variados perfis de mães. Não há dados sobre o número de contratações originadas na plataforma.

Em outra ponta da ação, empresas parceiras se cadastram para efetuar uma busca mais direcionada por essas profissionais. A ideia, de acordo com o publicitário, surgiu em um grupo de trabalho que atuava em um projeto de Dia das Mães e durante o qual foram trazidas à tona estatísticas de demissão de mulheres após o retorno da licença-maternidade -ou dados que mostram que, quando voltam, não raro é em cargos menos relevantes ou ganhando menos.

"As mães têm um perfil profissional diferenciado, à medida em que são mais resilientes, têm uma ótima capacidade de concentração e são capazes de desempenhar atividades multifacetadas", diz Pinheiro, que enfatiza que a plataforma não pretende ser um recrutador.

"As empresas que têm aderido à ferramenta, como parceiras, acreditam no potencial das mães. Mas o nosso objetivo é melhorar a autoconfiança dessa profissional e auxiliá-la, com artigos e dicas sobre os movimentos do mercado, mostrando que às vezes é preciso ter humildade e paciência numa fase que pode ser apenas uma transição de carreira."

Outra agência que atua na Contrate uma Mãe é a Lens e Minarelli, focada em gestão de RH. De acordo com um de seus diretores, Gustavo Lens Minarelli, outro objetivo da plataforma é sensibilizar o mercado de que "há a possibilidade de mães serem contratadas e isso não é tão difícil assim quanto elas imaginam".

Networking, currículo atraente e outras dicas

Entre as dicas que a plataforma sugere às candidatas, está a de não descuidar do networking. "As mães precisam se apresentar de uma forma atraente, se 'vendendo' da maneira correta, valorizando o que têm de positivo e tentando esquecer, ate onde é possível, que existe preconceito", diz Minarelli.

O executivo destaca a necessidade de fazer um bom currículo e se preparar para a entrevista se mostrando como alguém capaz de lidar com diferentes situações e pronta para recomeçar. Ressalta, ainda, algo que pode soar óbvio, mas que é essencial a quem se vulnerabiliza numa situação de desemprego. "A profissional não pode se apresentar como alguém que precisa de um trabalho, mas como alguém que vai trazer uma solução. Nenhuma empresa contrata alguém porque o outro precisa, mas para resolver problemas."

Contratação de grávidas é tabu, mas pode ser trabalhada

Tabu ainda maior a ser superado pelas profissionais mães, a contratação de mulheres grávidas não é algo que, no entendimento do especialista, não possa ser trabalhado. Minarelli admite que há um preconceito com essas mulheres, "como existem outros preconceitos ainda", mas avalia que a atitude de gestores pode estar ainda atrelada ao medo de as empresas correrem riscos.

"A maior parte das oportunidades são para começo imediato, porque existe a necessidade das empresas. Se uma mulher grávida busca uma vaga, sabendo que vai começar e, dentro de alguns meses, sair em licença-maternidade, é preciso se adequar à situação: a forma mais produtiva, nesse caso, é desenvolvendo um bom trabalho de networking que permita a ela criar conexões empáticas com outras pessoas.", define.

"É muito menos complicado se recolocar nesse momento de vida se você jogar aberto desde o início e traçar um plano conjunto, mostrar que está organizada para começar, se ambientar e dar continuidade ao voltar. Daí a necessidade de desenvolver um projeto, um cronograma, a fim de que, ao sair para a licença, tudo esteja engrenado."

Plataforma é ponta do iceberg, diz psicóloga

Para a psicóloga Marcela Lempé, que atuou por mais de uma década na área de recursos humanos de grandes corporações e hoje atende mães e casais para as novas possibilidades trazidas pela maternidade, plataformas como a Contrate uma Mãe representam "um passo a ser dado" pelo mercado, para reinserir as mães, mas ainda são "a ponta de um iceberg".

"Vejo muitas grandes empresas com iniciativas focadas em diversidade —para pessoas com deficiência, por mais negros ou mais LGBTs—, mas precisamos ainda falar da mulher em posições de liderança e das mães", afirma.

A parte encoberta do icerberg, na avaliação da psicóloga, seria o trabalho realizado nas corporações após a contratação desses profissionais.

"Não adianta colocar uma mãe dentro da empresa se eu continuo olhando para ela como algo menor, sem voz, ou, se toda vez que ela precisa sair mais cedo por causa do filho, ou porque o filho está doente e ela precisa levá-lo ao médico, ela passa a ter uma pior avaliação, por exemplo", diz a psicóloga.

"É preciso haver um trabalho de conscientização e sensibilização da liderança dessas empresas a fim de que ela veja essa escolha [pela profissional mãe] não só como propósito, mas como valor. Tem que estar na estratégia do negócio trazer valor agregado para a empresa e também para a sociedade", afirma.

Indagada sobre as dificuldades que as empresas ainda têm de inserir mães em seus quadros, a psicóloga destaca o modelo de produtividade em que prazos precisam ser cumpridos a qualquer custo. "Isso vem muito de uma cultura patriarcal, essa energia do masculino no lugar de poder e autoridade, desse homem que se desconecta da vida pessoal. Isso está enraizado há séculos na nossa cultura, mas vejo que, de pouco tempo para cá, especialmente com o movimento feminista, isso começou a mudar."

A psicóloga destaca que mulher-mãe agrega à equipe competências como "escuta, acolhimento, cuidado, conexão, que têm sido reconhecidas muito mais nos tempos atuais".

"Cabe às organizações entender se atuarão como rede de apoio dessas profissionais ou como classificadoras de expulsão dessas pessoas do mercado de trabalho."

Enjoos excessivos levaram à demissão

Demitida aos cinco meses de gravidez também por justa causa, a profissional de propaganda e marketing Gabriele Dias, 29, hoje mãe de uma bebê pequena, reforça as palavras da psicóloga: "É muito legal ter uma plataforma como essa, mas não acho que seja a solução para a reinserção das profissionais mães se, dentro dos RHs das empresas e da cultura organizacional, não se está preparado para receber essas mães. Ajuda bastante quando a gente é vista para algo além da maternidade".

A demissão de Gabriele teria ocorrido por suposto abandono de emprego -o que ela nega. "Eu tinha enjoos excessivos na gravidez, faltei várias vezes e fiquei afastada pelo INSS. Só a assistente social falava comigo, o RH, não, mesmo eu mandando e-mails ou ligando. Depois de 15 dias, recebi uma comunicação de demissão por justa casa por abandono de emprego", conta.

Gabriele chegou a ser reintegrada por decisão judicial, mas aguarda para o mês que vem a audiência que dará a resposta final ao caso.

Ela conta que trabalhava em uma multinacional de comunicação que faz trabalho interno por inclusão de minorias. "Às vezes, o discurso não se sustenta na prática. E ter poucas mulheres ainda em posições de chefia ajuda a explicar um pouco a situação".

O que ela espera para o futuro? "Um trabalho em que eu consiga desempenhar bem minhas funções de mãe, mulher e profissional. Chegar às 23h para ver minha filha é uma realidade que não me pertence mais."